O QUE É A ESCOLA PÚBLICA LAICA?

Postado por jamsepulveda2 em 30/maio/2019 - Sem Comentários

A escola pública laica é própria do Estado laico. Só mesmo em situação de extrema incongruência, e por pouco tempo, é possível existir escola laica nas redes oficiais de ensino se o Estado estiver submetido à hegemonia de uma ou mais instituições religiosas. Da mesma forma, a laicidade do Estado não é compatível com a escola pública submetida pela religião. O Estado brasileiro é laico? As escolas das redes federal, estaduais e municipais são laicas?

Em outras seções desta página encontram-se respostas para essas perguntas. Aqui vamos definir os critérios para a realização do diagnóstico dos sistemas públicos de ensino, no que diz respeito à laicidade da educação neles ministrada.

  1. Na escola pública laica, a religião não é matéria de ensino nem coadjuvante de outras matérias. Dito de outro modo: não existe nela a disciplina Ensino Religioso, nem mesmo em caráter facultativo, pelas razões que podem ser encontradas em várias seções desta página; a religião também não penetra clandestina no conteúdo de outras disciplinas. A religião pode ser tema de análise da Filosofia, da Sociologia e da História, mas não é referência para sustentação de valores, visões de mundo, comportamentos ou atitudes. Por exemplo, na escola pública laica, não são feitas orações antes da entrada em sala ou no início de cada aula; nem mesmo aparece nas falas e admoestações dos professores, como, por exemplo, “fique quieto, Jesus está te olhando!” ou nos artifícios disciplinadores, como, por exemplo, “puxar” oração para acalmar uma turma indisciplinada,
  2. Na escola pública laica o ensino é pautado pela atitude crítica diante do conhecimento, ou seja, não há conhecimento sagrado ou inquestionável. Tudo pode ser posto sob o exame da razão: Literatura, História, Geografia, Ciências, etc.  Portanto, o livro didático não pode ser considerado inquestionável ou sagrado, não pode ser apresentado como o depositário do conhecimento pronto e acabado. Ele não é o fim das indagações, apenas um instrumento muito útil para o acesso a informações e a indagações. Do mesmo modo, a palavra do professor não pode ser entendida como a de um profeta, mas de “parteiro” do processo de acesso ao conhecimento, como na feliz imagem de Sócrates, apresentada há 24 séculos. Existem religiões que têm livros sagrados. Segundo seus seguidores, eles contêm a verdade ditada por uma entidade sobrenatural. Na escola pública laica não pode existir livro com estas características. É preciso que os professores e os alunos lembrem-se, todo o tempo, que o conhecimento é historicamente produzido. O que hoje é aceito como a última palavra, pode ser superado amanhã. Assim, a preparação dos alunos tem de ser feita em função da mudança da ciência, da cultura e da tecnologia. E se isso não começar desde o início da escolarização, vai ser difícil reverter a disposição em aceitar fórmulas prontas. Nesse aspecto, a perspectiva laica da escola pública coincide com o que há de melhor na pedagogia contemporânea.
  3. A escola pública laica não objetiva “pôr as crianças nos trilhos”, de cujo traçado prefixado jamais sairão. Nada é mais contra a pedagogia da escola laica do que o trecho do livro Provérbios, da Bíblia, tão repetido pelos adeptos da pedagogia autoritária: “Ensina a criança no caminho que deve andar, e ainda quando for velho, não se desviará dele.” Somente quem acha que tudo já é sabido e dominado pelos mestres de ontem e de hoje pode supor que tem o traçado dos trilhos pronto para todo o sempre. Se essa orientação serve para os ensinamentos religiosos judaico-cristãos, ela não pode ser transferida para a educação, especialmente para a que o Estado laico mantém.
  4. A escola pública laica considera e respeita as opções religiosas dos alunos e suas famílias, sem se prender a critérios estatísticos das religiões dominantes – qual é a religião da maioria? A escola não pode menosprezar crianças por causa da religião que praticam em suas casas ou comunidades de culto. Mesmo que precise ir contra alguns de seus preceitos, como no caso da evolução das espécies, que horroriza aqueles que não conseguem (ou não querem) ir além da compreensão literal da Bíblia. Não fica refém dessa compreensão, que precisa dissolver, mas trata com respeito o que precisa mudar. A escola pública laica não reprime nem humilha as crianças e os jovens, nem mesmo quando eles precisam usar vestimentas próprias dos ritos de suas religiões ou de práticas alimentares em certos momentos. Ela aceita, por exemplo, que os alunos adeptos de religiões afro-brasileiras permaneçam em sala com a cabeça coberta, se isso for exigência de rito de iniciação, ao invés de os forçarem a retirar o lenço, em nome das crenças religiosas dominantes, camufladas por alguma norma geral, como a proibição de uso de bonés na escola.
  5. A escola pública laica não abandona práticas nem conteúdos próprios da cultura escolar nem da cultura popular porque os adeptos deste ou daquele culto podem ficar melindrados. Como fazer isso, é preciso inventar, e não vai ser fácil, devido ao longo tempo de sujeição da escola pública aos ditames das instituições religiosas – católicas por cinco séculos, evangélicas agora, juntas às vezes, separadas e rivais, outras. Não é “fazer média” com os credos dominantes. Nem mesmo aceitar os preconceitos religiosos que os alunos trazem de suas famílias e suas comunidades de culto. Esses preconceitos devem ser enfrentados com coragem, determinação e pedagogia. É o caso da rejeição dos homossexuais pelas correntes religiosas que dizem que a Bíblia os condena, que são doentes e precisam de cura. A escola pública laica não pode incorporar essa homofobia de origem religiosa, tanto quanto a que não precisa desse tipo de justificativa.
  6. Na escola pública laica não há lugar para o integrismo ou o totalitarismo. Há quem pretenda resolver os problemas da sociedade mediante uma concepção de educação que abranja todas as dimensões da vida individual e social, como se todos os processos educacionais fossem submetidos a uma pauta única de valores e a uma direção intelectual e moral unificada. Como, aliás, aconteceu na Idade Média europeia, na época da dita Cristandade, e na Alemanha nazista. Os partidos nazistas, fascistas e assemelhados estão crescendo, em todo o mundo, mas quem defende hoje essa educação totalitária (dita integral), no Brasil, são setores da Igreja Católica: tudo submeter aos dogmas e preceitos religiosos – aos seus. Ora, esse tipo de educação não é hoje possível nem desejável, por pelo menos duas razões. (i) A complexidade da sociedade moderna, na qual as instituições religiosas (ou quaisquer outras) não estão sozinhas na direção dos processos socializadores. Até mesmo as escolas mantidas pelas instituições religiosas dependem de aprovação estatal para funcionarem. São vários os processos educacionais que convergem e divergem: família, escola, instituição religiosa, comunicação de massa, grupos políticos, grupos de convivência, grupos desportivos, etc. (ii) A democracia exige que se abandone toda e qualquer pretensão de educação totalitária, sob que nome venha, mesmo disfarçada pelo termo integral, que tem muitos e diferentes significados, conforme o contexto em que é empregado. A escola, por mais que seja chamada a desempenhar papéis socializadores no lugar das famílias, não pode pretender assumir toda a atividade educacional. Nem as instituições educacionais. Nem os meios de comunicação de massa. Nem mesmo o Estado. A busca de co-ordenação e consenso é o caminho da democracia também no campo educacional. No plano do Estado, os assuntos educacionais são propriamente do Ministério da Educação, mas perpassam os Ministérios da Cultura, das Comunicações, dos Esportes, para mencionar apenas os de mais óbvia interface.

Pelos pontos apresentados acima, podemos concluir que não basta suprimir os elementos mais ostensivos da presença religiosa na escola pública para que ela seja efetivamente laica. Mesmo sem esses elementos, a escola pode estar preparando indivíduos dotados de atitudes propícias para seguir propagandistas de vários tipos – religiosos, políticos, apresentadores de TV, etc. –, por não ter sido capaz de despertar, promover e exercitar o pensamento crítico. Pautar a política pela religião, ainda mais a partir de algum livro considerado sagrado, é sintoma evidente da carência de educação laica.

Podemos concluir, também, que a escola pública laica exige uma adequada preparação de professores e outros profissionais da educação, tanto quanto de recursos materiais adequados como bibliotecas, laboratórios de ciências e espaços de expressão de artes e lazer. Ou seja, a escola pública laica pede muito mais do que a rotina do ensino tradicional (ainda que tenha novidades eletrônicas). E exige, também, dos educadores especial empenho profissional e atenta consciência pedagógica e ética.

É tão difícil definir a escola laica, em poucas palavras, quanto definir democracia. Esta e aquela estão em permanente construção, razão pela qual defini-las, bem como construí-las, só pode ser o resultado de um contínuo esforço coletivo teórico, mas, sobretudo, político-prático.

Mãos à obra!

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