ARGENTINA

Postado por jamsepulveda2 em 05/maio/2020 - Sem Comentários

“O governo federal deve sustentar o culto apostólico católico romano”. (Artigo 2º – Constituição Nacional Argentina. 1994)

Com este artigo, aprovado em 1853, e mantido nas reformas constitucionais de 1860, 1866, 1898, 1957 e 1994 a Argentina traz em sua história uma enorme controvérsia sobre a relação entre Estado e religião e sobre o status conferido ao país: Estado confessional ou um Estado laico?

O texto sancionado em 1853 refletia a importante presença do catolicismo no estágio da organização nacional do país, reconhecendo a liberdade de culto, sem restrições, e concedendo especial privilégio à Igreja Católica, cujo culto seria sustentado pelo governo (art. 2º). O artigo 67, inciso 15 estabelecia entre os poderes do Congresso “manter o tratamento pacífico com os índios e promover sua conversão ao catolicismo”.  Através dele também ficou estabelecido como requisito para ser presidente o juramento “por Deus Nosso Senhor e estes Santos Evangelhos” no ato de posse.  

Os primeiros marcos da separação do Estado com a Igreja só viriam a aparecer algumas décadas adiante, quando liberais, maçons e positivistas passaram a reivindica-la. Dentre eles estavam a criação do Registro Civil da Nação, pois até então nascimentos, casamentos e óbitos eram registrados nas paróquias.  Era o início de inúmeras tensões entre governo e clero. Dentre elas também estariam a questão do monopólio sobre a educação.

Nesse sentido, as chamadas “presidências fundacionais”[1] cumpriram um papel de destaque, pois atribuíam à educação o papel insubstituível de formar o cidadão.  Dentre eles, ressalta-se a notoriedade e a importância da atuação de Domingo Sarmiento.  Em 1882, por exemplo, no Congresso Pedagógico Internacional este, representando correntes de pensamento defensoras da laicidade do ensino oficial, protagonizou um duro embate com os católicos ultramontanos, defensores da educação religiosa nas escolas públicas.

Como resultado assistiu-se a aprovação de uma legislação conciliatória, a Lei nº1420 de 1884, que ao passo que trata a educação como um direito do Estado e não mais como monopólio da Igreja, também prevê no art. 8º que o ensino religioso só poderia ser dado nas escolas públicas pelos ministros autorizados dos diferentes cultos, às crianças de sua respectiva comunhão, e antes ou depois das horas de aula.

Portanto, mesmo previsto legalmente, o ensino religioso a partir da Lei nº1420 excluía o ensino de religião do horário escolar, a disciplina devia ser ministrada fora do horário escolar para quem assim o desejasse, e também impedia que os professores o fizessem, devendo a mesma ficar a cargo dos padres, pastores, rabinos e outros líderes religiosos à época reconhecidos pelo Estado. Essa exclusão do ensino religioso no horário escolar pode ser considerada uma vitória das correntes liberais à época.

Se o cenário nacional neste momento era de secularização da cultura[2], o mesmo propiciou um afastamento entre Estado e Igreja, e seguiu repercutindo em diversas esferas, especialmente na educacional. Como consequências desde quadro podemos mencionar à reforma universitária de 1918, que culminou em uma universidade secular, livre e co-governada, ou seja, sem o domínio da Igreja.

Desde então, a Argentina vem alternando momentos de maior distanciamento e outros de aproximação com os processos de secularização. Mas, em nenhum deles a Igreja deixou de lograr espaço constitucional e de garantir prerrogativas e privilégios legais garantidos pelo Estado. O atual texto constitucional, sancionado em 1994, apesar de ter eliminado a exigência de que o presidente eleito professasse o catolicismo, conforme determinavam as Cartas anteriores, manteve o apoio do Estado ao culto católico.

Importante mencionarmos a enorme disputa em torno desta sustentação legal por parte do governo federal ao catolicismo e que o fato chegou até o Supremo Tribunal, que o interpretou como jurisprudência relacionada a obrigação de apoio econômico. Ou seja, a Igreja recebe subsídio do Estado. Cabe ressaltar que como todas as colônias ibero-americanas que mantiveram o regime do padroado, ou seja, em que a Igreja Católica foi definida como religião oficial, esta recebeu uma série de privilégios e subsídios do Estado durante este período. E que mesmo findado os laços de colônia o clero católico continuou sendo mantido pelo governo materialmente e politicamente. Portanto, essa relação econômica, material e de privilégios se constituí historicamente na trajetória do país.

Segundo dados do Questionário sobre Crenças e Atitudes Religiosas na Argentina, realizado pelo Conicet em 2008, 76,5% dos entrevistados se reconhecem como católicos. Ateus, agnósticos e pessoas que afirmam não ter religião aparecem em segundo lugar (11,3% dos entrevistados), seguidos por evangélicos, que somam 9% do total (MALLIMACI; ESQUIVEL & IRRAZÁBAL, 2009). Essa grande quantidade de seguidores registada fornece um subsídio anual do Estado no valor de 176 milhões de pesos para a Igreja católica.

Outras formas de privilégio econômico ainda vigentes são os pagamentos dos salários e das aposentadorias de integrantes do clero realizados pelo Estado. O pagamento passou a ser determinado por leis aprovadas na ditadura militar, as leis 21.540 e 21.950, mas que estão vigentes até os dias de hoje. Assim, arcebispos e bispos chegam a receber 80% do salário de um juiz federal de primeira instância, enquanto auxiliares recebem o equivalente a 70% do mesmo. Importante ressaltar sobre este período as relações estreitas dos governos militares com a Igreja Católica em busca de suporte para a repressão política e ideológica. Não se inaugura uma relação do Estado com a Igreja nesse momento, conforme vimos tratando neste texto, mas há uma reaproximação e novos privilégios e benefícios são concedidos em troca do apoio ao regime.

A educação confessional católica também permanece subsidiada pelo governo argentino. Atualmente, o ensino de religião nas escolas públicas está previsto em algumas constituições provinciais e, portanto, ocorre de forma diferenciada em algumas províncias. Além disso, Bianchetti (2009) chama atenção para como este vínculo também se manifesta fortemente no ensino superior e como a Universidade Católica Argentina (UCA) é quem mais se beneficia. Segundo o autor, ela fornece os intelectuais tradicionais requeridos pelo conservadorismo local para ocupar espaços de poder.

 Mas para compreender este complexo cenário é importante pensarmos também no apoio popular que tal subsidio fornecido pelo governo recebe. Segundo pesquisa realizada pelo Programa Sociedad, Cultura y Religión CEIL CONICET em 2019, encuesta nacional sobre creencias y actitudes religiosas, em todo o país 62,9 % da população argentina se declaração católica quando perguntada “Cuál es su religión?”. Há, portanto, ainda um forte apelo e apoio popular à Igreja.

Em contrapartida, em um cenário, onde a separação entre Igreja e Estado não é muito evidente, vem crescendo movimentos pró laicidade do Estado. É o caso da Coalizão Argentina por um Estado Laico (Cael), que chegou a contar com mais de 30.000 seguidores nas redes sociais, organizou eventos nas principais cidades do país para os grupos de pessoas que quisessem anular seu batismo pudessem entregar coletivamente o pedido às dioceses.

Estes movimentos entraram em ascensão após um grande lobby por parte de setores conservadores vinculados às Igrejas, pressionando os legisladores em torno da votação histórica no senado argentino em torno da legalização do aborto em 2018. Os senadores do país rejeitaram por 38 votos contra 31 uma proposta de lei que visava legalizar a interrupção voluntária da gravidez. O país do papa Francisco autoriza a interrupção da gravidez somente em caso de estupro ou se a gestação apresenta risco para a saúde da mãe.

O projeto despertou uma febre libertária e geracional e levantou uma “maré verde”.  As feministas e mulheres de diferentes camadas sociais e idades ocuparam as ruas e mobilizaram de forma que o tema repercutiu internacionalmente. Mas a ação da Igreja Católica no país foi decisiva. A Igreja interveio diretamente nesta batalha parlamentar, com uma estratégia agressiva dirigida aos senadores e governadores “em favor da vida”.

O resultado contrário ao projeto de legalização do aborto e a interferência direta das igrejas cristãs, especialmente da Igreja Católica, gerou bastante indignação. Quase duas semanas depois da rejeição do projeto pelo Senado argentino, centenas de cidadãos participaram de uma apostasia[3] coletiva em Buenos Aires organizada pela Coalizão Argentina por um Estado Laico. O objetivo dos manifestantes era não apenas recusar o catolicismo, mas também fazer um apelo em favor do Estado laico.

 A apostasia é um gesto político forte, uma manifestação de oposição à ingerência permanente da Igreja nos debates da sociedade e evidencia o desenrolar de um conflito envolvendo a questão inicial deste texto, envolvendo o caráter confessional ou laico do Estado Argentino.  Uma disputa com muitos capítulos ainda em disputa.

Referências

BIANCHETTI, Gerardo. Una Trinidad no tan santa. Página 12. Buenos Aires, 1/2/2009.

Constituição Nacional Argentina. Lei Nº 24430. Disponível em: https://www.casarosada.gob.ar/images/stories/constitucion-nacional-argentina.pdf. Acesso em: 05/05/2019

MALLIMACI, ESQUIVEL, Juan Cruz & Irrazábal, Gabriela. Primera encuesta sobre creencias y actitudes religiosas en Argentina. Disponível em htpp://www.culto.gov.ar/encuestareligion.pdf. Acesso em: 14/01/2019


[1] Formada por três presidentes da República Argentina, em mandatos consecutivos, sendo estes: Bartolomeo Mitre (1862/1868), Domingo Sarmiento (1868-1874) e Nicolás Avelaneda (1874-1880).

[2] Secularização designa o processo de mudança pelo qual a sociedade deixa de ter instituições legitimadas pelo sagrado, baseadas no ritualismo e na tradição, tornando-se cada vez mais profana (ou secular), baseada na individualidade, na racionalidade e na especificidade. Fonte: http://ole.uff.br/estado-laico-leigo-ou-secular/

[3] Renúncia de uma religião ou da fé religiosa.

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