ALEMANHA

O armistício entre católicos e protestantes firmado em Münster e Osnabrück, em 1648, que pôs fim às guerras de religião na Europa, fundamenta, até hoje, a ligação Igrejas-Estado na Alemanha.

Para Zylberberg, a laicidade não faz parte da história da Alemanha contemporânea. No entanto, em dois momentos, o Estado alemão flertou com a laicidade. O primeiro foi em 1867, quando o chanceler Bismarck, artífice da unidade alemã sob hegemonia prussiana, implementou uma política laica mais com o objetivo de conter a influência política da Igreja Católica do que por efeito de uma opção propriamente ideológica. No âmbito da Kulturkampf (luta cultural), o sistema educacional público recebeu medidas de laicização. Em 1874, a Prússia instituiu o casamento civil obrigatório e, no ano seguinte, interditou as ordens religiosas católicas, exceto as que atuavam nos hospitais. Essas medidas foram eliminadas em 1878, permanecendo apenas o casamento civil e a interdição da Companhia de Jesus, que foi anulada três décadas mais tarde. O segundo momento de flerte com a laicidade foi em 1918, quando esteve no poder uma instável aliança de spartakistas, socialistas e liberais de esquerda, que determinou a separação entre o Estado e as Igrejas, bem como a eliminação da tutela religiosa sobre as escolas públicas.

A República instituída em 1919 pôs fim aos decretos anticonfessionais e incorporou em sua Constituição elementos do interesse religioso, como o estatuto jurídico das Igrejas e das instituições confessionais como corporações de direito público, bem como a competência dos estados federados em matéria educacional, cultural e religiosa.

A crise econômica que assolou a Alemanha, derrotada e submetida a pesados pagamentos de reparação aos vitoriosos da I Guerra Mundial, foi aumentada pela crise do capitalismo mundial em decorrência da quebra da bolsa de Nova York, em 1929. Os movimentos de extrema direita foram unificados pelo Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, mais conhecido pela sigla NAZI. O programa do partido, aprovado em 1920, tinha forte conotação religiosa. Para ser cidadão, não importava a confissão religiosa, mas, sim, o “sangue alemão”. Isso, todavia, não valia para os judeus, que não podiam ser cidadãos. O programa reivindicava liberdade para todas as confissões religiosas, desde que não pusessem em perigo o Estado nem ofendessem o sentimento moral da “raça germânica”. Sem mencionar uma confissão específica, o programa defendia um “cristianismo positivo”, que logo recebeu o significado preciso de colaboração com o partido.

A posição das Igrejas Católica e Protestantes variou da colaboração entusiasmada com o nazismo à resistência passiva. Os católicos tinham um partido político, o Zentrum Partei, que poderia conter os ímpetos nazistas, mas ele foi paralisado pela concordata firmada pelo cardeal Pacelli, futuro papa Pio XII, e o chanceler de Hitler, von Papen, em 1933, justamente no ano em que o Partido Nazista assumiu sozinho o poder. A repressão movida pelos nazistas aos maiores inimigos da Igreja Católica – os comunistas, os socialistas, os anarquistas, os liberais e os maçons – serviu para atenuar as resistências à perseguição aos judeus e até mesmo a parte de suas organizações. Entre os protestantes houve quem atuasse no sentido da rejeição do velho testamento, por ser herança judaica, e da fusão do Cristianismo com o nazismo, do que o pastor Ludwig Müller foi o maior expoente. Em 1937 e em 1939 encíclicas papais condenaram o racismo, mas o nazismo já estava solidamente estabelecido. A guerra iniciada neste ano ajudou a manter os alemães unidos contra o inimigo externo, até a rendição final em 1945.

O país saiu da II Guerra Mundial dividida pelas potências vencedoras: a ocidente do rio Elba, a República Federal da Alemanha, capitalista, ocupada por Estados Unidos, Grã-Bretanha e França; a oriente, a República Democrática da Alemanha, socialista, ocupada pela União Soviética.

A Constituição da Alemanha Ocidental (na realidade chama-se Lei Fundamental), de 1949, não estabelece Igreja de Estado, mas o status políticos da Igreja Católica e das Igrejas Protestantes são tais que dificilmente se pode chamar de separação. Zylberberg denominou o status existente de “oligopólio das principais igrejas cristãs”. Diz a Constituição que são invioláveis a liberdade de crença e de consciência, bem como a liberdade de profissão fé religiosa e filosófica. Garante o direito dos pais em matéria de instrução religiosa dos filhos. Os professores, por sua vez, não são obrigados a ministrar a instrução religiosa contra sua vontade.

Templos católicos e protestantes eram, a oeste do Elba, locais de consenso ideológico e manutenção da ordem. Na Alemanha Oriental, embora a liberdade de religião estivesse no texto constitucional, a propaganda estatal era sobretudo anti-religiosa, de modo que dificilmente se possa dizer de um Estado não ateu. A leste do Elba, os templos católicos e protestantes eram locais de perturbação da ordem, nos quais padres e pastores abrigavam dissidentes.

O aparato jurídico-político da Alemanha Ocidental foi estendido à Oriental, com a  reunificação do país, em 1990, depois do colapso do Pacto de Varsóvia e da União Soviética, simbolizados pela derrubada do muro que dividia os dois lados de Berlim.

 Em 2002, 76% da população do oeste declarou-se membro de uma instituição religiosa, enquanto apenas 28% da população do leste tinha esse tipo de filiação. Considerando o país reunificado, 60% da população é católica ou protestantes. Em número absolutos aproximados, são 30 milhões de protestantes, 28 milhões de católicos, 1,6 milhão de muçulmanos e 200 mil judeus.

Um elemento peculiar da ligação religião e Estado, na Alemanha, é o Kirchensteuer, o Imposto da Igreja, a que estão sujeitos católicos e protestantes. Cada contribuinte deve declarar sua filiação a uma Igreja ou, então declarar não ter essa filiação. Quando da declaração de renda, a repartição governamental responsável acrescenta, automaticamente, 10% ao imposto devido, parcela que será transferida à Igreja declarada. Se o contribuinte declarar não filiação a uma das Igrejas reconhecidas ou solicitar desfiliação à administração municipal, ele ficará dispensado daquele acréscimo, mas perderá o direito aos serviços de casamento e enterro religiosos.

Os ministros dos cultos reconhecidos, isto é, padres e pastores, são remunerados pelo Estado de acordo com seu status no interior das respectivas Igrejas.

Depois do Estado, em todas as suas instâncias, as Igrejas são as maiores empregadoras, em suas instituições de educação e saúde, mas são regidas por uma legislação trabalhista especial, na qual não existe o direto de greve.

O ensino religioso é obrigatório nas escolas públicas, podendo haver dispensa, caso em que atividades alternativas devem ser oferecidas aos alunos.

A regulamentação do dispositivo constitucional sobre questões educacionais é feita pelos estados federados, o que propicia situações distintas entre eles. Por exemplo, na Baviera, entre os objetivos gerais da educação está o “respeito a Deus”; em Bade-Wurtemberg, a educação deve ser ministrada “na consciência de Deus e no amor cristão ao próximo”; em Hesse, a missão educativa da escola repousa sobre “a tradição humanista e cristã”.

As notas da disciplina religião ou sua substituta entram no cômputo final, mas os alunos não devem repetir o ano por causa dessas notas. Os candidatos ao Abitur, o exame de saída do ensino secundário, podem escolher entre religião e ética como matéria de prova.

Os professores de religião são do quadro do magistério oficial ou recrutados pelos bispos, remunerados por uma dessas fontes, mas todos devem ter diploma de ensino religioso.

Nas escolas públicas, há cerimônias religiosas para celebrar o início e o fim do ano letivo, das quais os alunos e professores devem participar. Os programas do ensino religioso nas escolas públicas são elaborados pelas sociedades religiosas – protestante, católica e judaica. Mais raramente, a Igreja Ortodoxa é chamada a elaborar o seu, nas áreas de maior contingente imigrante de origem grega.

A pequena institucionalização do clero muçulmano, quando comparado com o daquelas religiões, dificulta, para as autoridades educacionais estatais, a inclusão dessa religião no elenco da oferta. Isso, a despeito de o número de imigrantes muçulmanos ser crescente na Alemanha.

Na linha de uma progressiva secularização do país, alguns estados instituíram atividades opcionais ao ensino religioso nas escolas públicas, nas quais as questões religiosas são abordadas, mas com distanciamento, predominando o caráter informativo. Há cursos de Ética (Bade-Wurtemberg, Hesse, Renânia-Palatinato, Saxe, Saxe-Anhalt), de Valores e Normas (Baixa Saxônia); de Filosofia Prática (Bremem, Schleswig-Holstein, Mecklembourg-Pomerânia, Renânia-Westfália).

Os debates em torno da questão do ensino religioso nas escolas públicas é intenso e parece estar longe de um consenso. A Igreja Luterana defende um ensino religioso ecumênico, enquanto a Igreja Católica prefere seu oferecimento separado pelas diversas confissões, como é feito atualmente.

Na Baviera, onde a lei manda pôr o crucifixo na sala de aula, em lugar proeminente, um grupo de pais de alunos impetrou ação na justiça exigindo a retirada desse símbolo religioso, em atendimento ao dispositivo constitucional da liberdade de culto. A Corte Constitucional decidiu a favor dos pais, contra a lei bávara, que seria, neste aspecto, inconstitucional. Em reação, o parlamento do estado elaborou outra lei, mandando repor o crucifixo no mesmo lugar, mas adicionou uma cláusula que previa sua retirada no caso da solicitação dos pais, em determinadas condições, driblando, assim, a Constituição Federal, que não prevê religião oficial.

No estado de Brademburgo, a decisão de 1996, de substituir o ensino religioso nas escolas públicas pela “Concepção da Vida Ético-Religiosa”, foi combatida pelas Igrejas Luterana e Católica, de modo que ele foi restabelecido como matéria obrigatória, mantida esta como optativa.

O uso de véu islâmico pelas alunas não encontra problema, mas, ele é vedado às professoras que seguem esse credo. Uma candidata ao magistério público, que portava esse véu teve sua inscrição recusada em processo seletivo, apesar do protesto das associações muçulmanas, que denunciaram a discriminação: enquanto existe ostentação de símbolos cristãos nas escolas, rejeitam-se símbolos muçulmanos.

Por tudo isso, não causa espécie que a chanceler Angela Merkel, filha de pastor, declare que um dos objetivos explícitos da política externa alemã é combater as perseguições religiosas de minorias, especialmente as cristãs.

No entanto, esse sistema está em crise, por vários fatores, principalmente pela crescente secularização da cultura, que tem levado ao que foi chamado de “excesso de laicidade”, como a decisão do Tribunal de Colônia, em 2012, que determinou a ilegalidade da circuncisão de crianças, a não ser por razões médicas. A razão alegada é que esse procedimento produzia uma alteração definitiva nos corpos dos meninos, que impediria mudança de sinal em sua opção religiosa, quando adultos, se for essa sua vontade. As associações representativas de judeus e de muçulmanos residentes no país têm protestado contra o que consideram discriminação de suas práticas religiosas milenares.

REFERÊNCIAS

“Etrange laïcité à l´allemande”, Le Monde 3/12/2012.

“Excès de laïcité: l´Allemagne s´interroge sur l´interdiction de la circoncision”, acessado em 4/2/2014 em

http://www.atlantico.fr/decryptage/exces-laicite-allemagne-interroge-interdiction-circoncision-thierry-rambaud-464193.html

 “L´Allemagne et la laïcité”. Observatoire de la démocratie, acessado em 4/2/2014 em

http://www.europe-et-laicite.org/spip.php?article272

WILLAIME, Jean-Paul e MATHIEU, Séverine (orgs). Des maîtres et des dieux – écoles et religions em Europe, Paris: Belin, 2005.

ZYLBEBERG, Jacques. “Laïcité, connais pas: Allemagne, Canada, États-Unis, Royaume-Uni”, Pouvoirs, nº 75, 1995.

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