ARGÉLIA

Islamizada desde o século VII da Era Comum, a região que veio a formar o emirado da Argélia foi conquista pela França numa longa e encarniçada operação militar iniciada em 1830, do que resultou a morte de cerca de um terço da população local. A Argélia tornou-se uma colônia de povoamento formada por imigrantes europeus, principalmente franceses e espanhóis, que estabeleceram plantações e exploração mineral. Durante a III República, portanto desde 1870, as populações locais tinham, pelo menos em tese, os mesmo direitos e deveres dos franceses metropolitanos no que dizia respeito ao acesso aos cargos públicos, ao serviço militar e ao ensino público laico. No entanto, a ampla e generalizada discriminação jurídica e política entre colonos e argelinos não permitiu aos jovens formados nas escolas públicas  incluírem a laicidade republicana em seus anseios independentistas. Ao contrário, formou-se a equação argelino=muçulmano; francês=cristão/judeu//ateu.

Durante a II Guerra Mundial, a adesão da administração colonial ao governo do marechal Pétain, de colaboração com a Alemanha nazista, seguida pela adesão aos aliados, em 1943, favoreceu o movimento nacionalista, que tomou força com a libertação da Europa. Contra ele, a repressão policial-militar francesa foi brutal, o que, por sua vez, reforçou as organizações que lutavam pela independência. A luta armada começou em 1954, na qual a dimensão religiosa foi importante: o islamismo assumiu um lugar destacado na distinção diante da dominação estrangeira. A resistência francesa, legal e clandestina, foi intensa, alimentada pela frustração das derrotas diante da invasão alemã e da independência da Indochina. Essa resistência incluiu um golpe de Estado perpetrado pela tropa francesa de ocupação, sufocado pelo general De Gaulle, novamente presidente da República. Um cessar fogo foi estabelecido em 1962, ao que se seguiu a proclamação de independência, logo reconhecida pela França, que acolheu 800 mil argelinos de origem europeia, 120 mil judeus e 140 mil harkis (muçulmanos colaboradores da dominação colonial).

A Argélia tornou-se, então, uma República independente depois de mais de um século de dominação colonial, com a Frente Libertação Nacional assumindo a condição de partido único. O primeiro presidente, Ahmed Ben Bella, levou o país ao grupo dos não alinhados na guerra fria entre o bloco capitalista e o bloco comunista. Sua primeira viagem internacional foi aos Estados Unidos, onde o presidente Kennedy o recebeu festivamente. Ao mesmo tempo, o novo país estabeleceu tratados econômicos e militares com a União Soviética. Em 1965, Ben Bella foi deposto pelo seu ministro da Defesa Houari Boumediene, que radicalizou o componente socialista da revolução nacional argelina, cujo efeito mais notável foi a estatização do setor de petróleo e gás. A questão da mulher permaneceu em segundo plano, mas o aumento da oferta da educação pública favoreceu a escolarização feminina, o que ampliou sua presença em setores da sociedade argelina até então inacessíveis, na prática. Por outro lado, a islamização prosseguiu, como a substituição do fim-de-semana dito universal (sábados e domingos) pelo dito islâmico (quintas e sextas-feiras), ao mesmo tempo em que o ensino religioso islâmico nas escolas públicas foi ampliado, no bojo do qual se difundia a incitação ao ódio aos infieis – ateus, laicos, judeus, cristãos, etc.

Malgrado o autoritarismo no plano interno, a Argélia desenvolveu uma atuação internacional marcante, conduzida por uma diplomacia sofisticada, que compreendeu tanto o apoio ativo à libertação da Palestina quanto a intermediação na libertação de reféns norte-americanos no Irã.

A morte de Boumediene em 1978 abriu caminho para a abertura política, o abandono da referência ao socialismo e a reorientação capitalista na economia, o que foi conseguido pela ativação de forças políticas religiosas descontentes com os rumos esquerdistas da FLN. Contudo, o ressentimento popular contra a pobreza resultante das políticas econômicas neoliberais foi explorado pela Frente Islâmica de Salvação, partido integrista que pretendia instaurar um regime totalitário ainda mais radical do que o autoritário antecedente. Em nome do combate à corrupção, os integristas pretendiam impor seu violento corretivo material, agredindo e assassinando jornalistas, intelectuais e estudantes. O FIS venceu as eleições municipais de 1990 e obteve maioria no primeiro turno das eleições legislativas do ano seguinte. Um golpe militar interrompeu o processo eleitoral, que provocou uma verdadeira guerra civil durante toda uma década, na qual perderam a vida dezenas de milhares de pessoas.

A institucionalização da democracia representativa na Argélia não tem tido sucesso. A pressão da FIS é barrada pelo controle da FLN, apoiada principalmente nas Forças Armadas, apesar do pluripartidarismo estar formalmente em vigor. Desde 1999, Abdelazis Bouteflika tem sido eleito presidente, com base nos meios militares e com o apoio tácito de setores sociais que temem a islamização do país ainda maior. Apoio discreto da França favorece o regime autoritário, temendo a previsível imigração massiva de argelinos não adeptos do extremismo muçulmano.

Enquanto colônia da França, a Argélia era formalmente laica, pelo menos no estilo do francês: escola pública sem ensino religioso, desde 1881, e separação do Estado diante das instituições religiosas desde 1905. A independência argelina em 1962 levou a um retrocesso, em termos jurídicos formais, pois a primeira Constituição garantiu a liberdade de culto e o respeito aos direitos humanos, mas o Islã foi declarado religião de Estado.

O preâmbulo da Constituição, na versão de 2002 da República Argelina Democrática e Popular, diz ser o país árabe, africano e islâmico. Mais do que isso, reitera o estabelecido pela primeira versão, de 1962, ao estabelecer o Islã como a religião do Estado, além de interditar qualquer prática contrária à moral islâmica. Esse dispositivo é tão forte que as sucessivas versões do texto constitucional interditam explicitamente qualquer revisão que atente contra a posição do Islã como religião do Estado. A despeito disso, as liberdades de consciência e de opinião foram declaradas invioláveis, e o exercido de culto garantido, desde que respeitada a legislação vigente.  A Constituição prevê a formação de um Alto Conselho Islâmico, de caráter consultivo, junto ao presidente da República, composto de 15 membros designados por ele, encarregado de promover a reflexão dos ulemás e dos juristas muçulmanos na interpretação dos textos sagrados, assim como de emitir pareceres sobre as prescrições religiosas. Provavelmente com vistas ao FIS, posto fora da lei, a Constituição reconheceu, na revisão de 2006, que os partidos políticos podem se fundar sobre uma base religiosa, linguística, racial, de sexo, de corporação ou de região, mas estão proibidos de fazer propaganda a partir de tais bases.

O Ministério dos Negócios Religiosos remunera os imãs, assim como financia e supervisiona o ensino religioso islâmico nas escolas públicas. O ministério trata do calendário religioso e da manutenção material das mesquistas, fazendo lembrar uma versão africana e islâmica do padroado católico europeu.

O regime autoritário que sobreviveu à repressão ao FIS incorporou no governo a Fraternidade Muçulmana, organização política pan-árabe (todavia proibida no Egito e na Arábia Saudita), cujo objetivo oficial é a luta não violenta contra a laicidade do Estado e a imitação do modo de vida ocidental nos países islâmicos. Prossegue, assim, uma intensa islamização da sociedade e do Estado argelinos. O consumo de bebidas alcoólicas está em queda e cada vez mais mulheres cobrem a cabeça com o hijab. Em 2006, a legislação quebrou a norma constitucional de liberdade de culto, ao prever pena de prisão e multa pecuniária para quem tentar converter um muçulmano a outra religião ou mesmo enfraquecer sua fé. Além disso, os cultos não islâmicos somente podem ser praticados em locais determinados pelo Estado, o que atinge principalmente as Igrejas Evangélicas, que encontram dificuldades de registro no ministério. Tais igrejas tiveram que fechar templos, de modo que seus adeptos acabam praticando seus cultos em locais não autorizados, portanto ilegais, ficando sujeitos à prisão. O Código da Família, baseado na sharia, adotado em 1984, contradiz a Constituição, que garante a igualdade de direitos e deveres, independentemente de sexo, raça ou atividade. Casamento e herança são particularmente visados. O casamento põe a mulher em situação de minoridade social, apesar da presença feminina crescente no mundo do trabalho e dos serviços públicos (40% dos magistrados são mulheres). Apesar disso, toda mulher precisa de um tutor para se casar. A poligamia foi legalizada, mas uma reforma realizada em 2005 a fez dependente da eventual deficiência física da primeira esposa ou de sua incapacidade de procriar, a ser confirmada por autorização judicial. O matrimônio pode ser desfeito por vontade dos cônjuges, confirmada pela autoridade religiosa, mas a mulher divorciada perde a guarda dos filhos se contrair outro vínculo. Os testamentários devem ser muçulmanos, e uma pessoa que abandone o islamismo não pode receber herança de um muçulmano. A violência contra a mulher pode ser punida, mas seu perdão suprime qualquer processo judicial, o que a expõe às pressões familiares contemporizadoras.

Os atentados terroristas na Europa propiciaram um insólito acordo entre a França laica e a Argélia confessional. Como a maioria da população muçulmana naquele país é de origem argelina, o governo francês decidiu submeter os imãs a cursos de educação cívica nas universidades públicas, nos quais a laicidade republicana é um conteúdo central, sem que qualquer tema teológico seja abordado. De início, as universidades públicas francesas recusaram participar desse programa, justamente em nome da laicidade republicana, mas a intensificação dos atos terroristas no país mudou sua posição. Além dos imãs de nacionalidade francesa, um programa prevê a importação de clérigos estrangeiros. Um acordo estabelecido com a Argélia prevê o deslocamento para a França de 120 imãs, anualmente, para frequentarem tais cursos durante quatro anos, período no qual eles devem exercer, também, sua atividade religiosa nas mesquitas, tudo custeado pelo governo francês. A vantagem seria dupla: para a França, o reforço do clero muçulmano com elementos laicos, evitando que as mesquitas se tornem centros de recrutamento de terroristas; para a Argélia, a assistência religiosa aos emigrantes no estrangeiro por imãs nacionais, uma estratégia de manutenção de vínculos com o país de origem, principalmente vantajosa no caso de retorno.

Um possível efeito não intencionado desse programa parece levar à busca do Estado Laico na Argélia, ainda que tímida. Pela primeira vez a laicidade foi incluída na pauta política do país, e até mesmo se formou um Partido Pela Laicidade e Democracia. Ademais, é possível que o retorno ao país dos imãs formados em universidades francesas possa evidenciar que a separação entre o campo político e o campo religioso não prejudica a religião propriamente dita, além de servir de barreira institucionalizada à Frente Islâmica de Salvação, sem a intervenção militar.

BIBLIOGRAFIA

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