BÉLGICA

No século XVI, a Bélgica, junto com a Holanda e o Luxemburgo formavam os Países Baixos, dominados pela Espanha. Embora tenha participado da revolta contra o domínio espanhol, a Bélgica, majoritariamente católica, permaneceu sob soberania espanhola, enquanto a Holanda, majoritariamente evangélica, conquistou a independência em 1648, em decorrência da Paz de Vestfália, que pôs fim às guerras de religião na Europa. A Bélgica, correspondente ao principado eclesiástico de Liège, permaneceu dominada pela Espanha até o século XVII, após o que foi submetida à soberania da França e da Holanda. Em 1830 os belgas revoltaram-se contra a dominação holandesa protestante e proclamaram a independência. A invasão holandesa para retomar a Bélgica foi contida pela França e pela Grã-Bretanha, que apoiaram a independência, reconhecida internacionalmente em 1831, com chefia do Estado atribuído pelo parlamento do novo país ao príncipe Leopoldo de Saxe-Coburgo Gotha.

A Bélgica abrange uma população de grande diversidade cultural, que se distribui em duas regiões: Flandres, com 59% da população do país, falante do flamengo, uma variedade do holandês; e Valônia, com 31% da população falante de uma variedade do francês; os 10% restantes são bilíngues e estão concentrados em Bruxelas, a capital. Há também uma pequena parcela de habitantes de fala alemã. Essa divisão entre os dois grandes grupos linguísticos é fonte de conflitos que chegam a ameaçar a unidade do país, pois os flamengos, movidos pelo mais alto nível de vida, pretendem a independência.

Essa diversidade cultural se expressa na estrutura política do país, que adota o regime monárquico constitucional, na forma de uma confederação de duas comunidades (communautés), a flamenga e a valona, cada uma com seu próprio parlamento. Cada parlamento elege o governo da comunidade respectiva. No plano federal, o número de ministros deve ser igualmente dividido entre políticos oriundos da comunidade flamenga e da comunidade valona. É a comunidade que atua na educação, nos marcos da legislação federal.

A Constituição adotada em 1831, resultou de um compromisso político entre liberais e católicos, chamado de “unionismo”, pelo qual não houve religião de Estado, mas este assumiu o pagamento dos salários e das pensões dos membros do clero das religiões reconhecidas: o catolicismo, o protestantismo e o judaísmo, que receberam esse status logo na independência, herança da dominação napoleônica. O anglicanismo foi reconhecido em 1870; o islamismo em 1974 e o cristianismo ortodoxo, em 1985. Em 2006, o budismo requereu reconhecimento oficial, ainda não decidido.[i] Outras religiões são praticadas no país, mas não gozam dos benefícios do reconhecimento estatal.

O que parece estar em crise é a estrutura que os politólogos belgas chamam de pilliers, isto é, pilares de sustentação do status quo, que foram erigidos na independência do país e se desenvolveram muito desde então. Cada pilar não é apenas uma corrente ideológica, mas sua projeção na própria estrutura social. Assim, o pillier católico compreende uma igreja, uma rede de ensino em todos os níveis e modalidades, partido político, organizações sindicais e previdenciárias. O pillier laico é menos homogêneo, mas tem sua contrapartida nas organizações laicas, na rede pública de ensino, em partidos políticos, dos quais o principal é o socialista, assim como em organizações sindicais e previdenciárias próprias. As relações entre esses pilares de sustentação da Sociedade e do Estado belgas são menos de confrontos do que de compromissos, negociados na cúpula do governo e do parlamento.

Na Bélgica, esta forma de organização social, onde um Estado central relativamente fraco passa para as comunidades intermediárias um grande número de funções, foi maciçamente usada pelas católicos para manter um “ambiente” cristão preservado dos ataques da secularização. Mas ela foi adotada, também, ainda que em graus variáveis de realização, por todos os que combatem a hegemonia católica: liberais, socialistas e, atualmente, os laicos. (MARTIN, 1994, p. 32)

A Constituição foi reformada em 1994. Ela garante a liberdade de manifestação de opiniões em todos os assuntos, bem como a liberdade de culto e seu exercício público. Mas ninguém pode ser obrigado a participar dos atos e cerimônias religiosas nem de observar seus dias de repouso. As instituições religiosas são livres do Estado no que diz respeito à nomeação dos seus ministros. O casamento civil deve sempre preceder à bênção nupcial, salvo exceções que a legislação deverá determinar. É interessante que a Constituição não fala de casamento religioso, mas de bênção nupcial, de modo a evitar a confusão e a tentativa de validar um pelo outro. O ensino é organizado pela comunidade (flamenga ou valona) e deve ser neutro, o que implica, sobretudo, o respeito às concepções filosóficas, ideológicas ou religiosas dos pais e dos alunos. Até o fim da obrigatoriedade escolar,[ii] os alunos têm direito a uma educação moral ou religiosa, o que significa que a comunidade deve propiciar a escolha entre uma das religiões reconhecidas e a “moral não confessional”.

Logo de início, os católicos assumiram o controle sobre o ensino primário, sem que os liberais, partidários de posições laicas, conseguissem desenvolver iniciativas próprias ou influenciar o novo Estado quanto a suas políticas educacionais.[iii] A exceção foi no ensino superior. Diante da criação da Universidade Católica de Louvain, [iv] por iniciativa dos bispos belgas, os maçons promoveram a criação da Universidade Livre de Bruxelas, no mesmo ano de 1834. A expressão livre é sintomática da oposição aos católicos, que assim adjetivam suas escolas. Livre, para os católicos, significa, ainda hoje, livre do Estado. Para os maçons, a universidade que pretendiam criar deveria ser livre do fanatismo propiciado pelo controle clerical. Até a versão atual de seu estatuto expressa tal posição.

Art. 1º – A Universidade Livre de Bruxelas baseia o ensino e a pesquisa no princípio do livre exame, que postula, em toda matéria, a rejeição do argumento de autoridade e a independência de julgamento.

Art. 2º – A Universidade baseia sua organização sobre a democracia interna, a independência, a autonomia e a solidariedade. A democracia interna postula a garantia do exercício das liberdades fundamentais no interior da Universidade e a vocação dos corpos constitutivos da comunidade universitária de participar, com poder deliberativo, da gestão da Universidade e do controle de sua gestão.

Art. 3º – A missão da Universidade é: assegurar o desenvolvimento, a transmissão e a aplicação do conhecimento por uma pesquisa científica e um ensino livres de todo empecilho político e ideológico; assegurar, graças a essa pesquisa, a formação crítica dos que enriquecerão o conhecimento no interesse da coletividade; assegurar uma missão geral de serviço à coletividade e à sociedade, inclusive a de dispensar serviços médicos de saúde de qualidade relacionados ao ensino e à pesquisa universitários.[v]  [grifos nossos]

A despeito da posição anticlericalista dos fundadores da Universidade Livre de Bruxelas, a comparação das publicações de seus professores com as da rival Universidade Católica de Louvain, feita por Pierre François Daled, revelou-se ser mais de forma do que de fundo. Esse pesquisador da ULB mostrou que, no caso da Filosofia, os professores de ambas as universidades expressavam posições muito parecidas. Todavia, os da ULB usufruíam de uma liberdade de pensamento que permitia a existência, no seio da instituição, de mais de uma corrente teórica, embora predominassem os partidários da Filosofia espiritualista. Essa similitude foi explicada pelo fato de os professores da ULB não serem ateus, apesar de anticlericais.   (DALED, 2008, p. 140)

A Lei Nothomb, de 1842, determinou que cada municipalidade (commune) tivesse uma escola primária, que poderia ser privada (católica, exceto em situações excepcionais). Caso existissem escolas primárias católicas, as municipalidades poderiam “adotá-las”, o que significava mantê-las com recursos públicos. As escolas que fossem criadas pelas próprias municipalidades, portanto, escolas públicas, deveriam ministrar o ensino religioso católico.  Em reação a esse domínio quase completo da Igreja Católica sobre o ensino, foi criada a Liga do Ensino, em 1864, por livre pensadores formados na ULB, que lutavam pelo ensino laico. A Liga é considerada a primeira associação laica do país.

Em 1878 um governo liberal, com apoio dos socialistas, mudou o panorama educacional herdado do “unionismo”. A lei Van Humbeeck, do ano seguinte, desencadeou o que veio a ser conhecido como a “primeira guerra escolar”. Cada municipalidade deveria manter pelo menos uma escola pública e laica; a transferência de recursos para as escolas privadas foi suspenso; os professores deveriam ter diploma conferido por escola pública. De um modo similar ao que a lei Ferry determinava na França, o ensino da religião foi transferido para fora do horário escolar, e seria ministrado apenas aos alunos que o desejassem. O lugar do ensino religioso no currículo foi ocupado pelo ensino da moral. Ao contrário da França, onde a lei Ferry conseguiu se manter, apesar da oposição religiosa, na Bélgica ela desencadeou um forte conflito em torno do controle sobre o ensino primário, no qual os católicos desfecharam uma verdadeira cruzada contra os “corruptores da alma da criança”. (HAARSCHER, 1998, p. 47) Os bispos convocaram os católicos a abandonarem as “escolas sem Deus”. A convocação foi efetiva, pois o número de alunos das escolas primárias públicas diminuiu de 527 mil, em 1878, para 340 mil, em 1881. (DRAELANTS, et alii, 2003, p. 15)

O Partido Católico ganhou as eleições de 1884 e manteve-se no poder durante várias décadas. O regime das “adoções” de escolas privadas religiosas foi restaurado e o ensino do catolicismo retornou às escolas públicas.

Foi somente em 1954 que a hegemonia católica foi alterada, quando um governo de coalizão entre socialistas e liberais ganhou as eleições. A Lei Collard, de 1955, afirmou o direito do Estado de criar suas próprias instituições educacionais, em todos os níveis de ensino. As escolas católicas tiveram seus subsídios financeiros reduzidos e passaram a ser mais diretamente controladas. A reação a essa lei desencadeou a “segunda guerra escolar”, que, desta vez, incidiu sobre o ensino médio e técnico. Em 1958 a coalizão liberal-socialista sofreu uma derrota eleitoral e o poder retornou aos católicos. Mas já não havia condições políticas para a restauração, pois a secularização da cultura havia avançado, no país.

Um pacto escolar foi firmado em 1959 e continua em vigor. O Estado passou a ter o dever de estender sua oferta escolar a fim de satisfazer as demandas da população e de atender a todo o ensino não confessional. Paralelamente, ele subvenciona as redes escolares privadas, tanto as católicas quanto as de certos movimentos não confessionais, oriundas de movimentos de reforma pedagógica, como Dacroly e Freinet.

Ainda segundo o pacto escolar, as escolas públicas devem oferecer o ensino religioso dos cultos reconhecidos, conforme as escolhas dos alunos e suas famílias. Basta um pai de aluno solicitar o ensino correspondente ao seu culto, que, se for reconhecido, a escola pública deverá atendê-lo. A disciplina “moral não confessional” foi introduzida no currículo das escolas primárias e secundárias públicas para os alunos não optantes de qualquer das religiões reconhecidas. É interessante notar que “moral” foi qualificada de “não confessional”, ao invés de “laica”, para acolher alunos cujos pais são religiosos, mas não adeptos de nenhum dos cultos reconhecidos pelo Estado. (DRAELANTS, 2003, p.19)

Os alunos das escolas primárias públicas recebem o ensino dos rudimentos da moral prática, sem que sejam legitimados por qualquer religião. Para os alunos do ensino secundário, a disciplina “moral não confessional” compreende elementos das Ciências Sociais aplicadas a diversos problemas da vida em comum, por professores com formação bastante diversa. A designação dos professores dessa disciplina é feita em função da complementação de sua carga contratual de trabalho. Nas escolas católicas, apenas essa religião faz parte do currículo, não há lugar para a opção pela disciplina alternativa “moral não confessional”. Para os pedagogos católicos, a doutrina de sua religião contém toda a moral que vale a pena ser ensinada e praticada, tanto na vida privada quanto na vida pública.

Atualmente, a rede católica de ensino abrange um pouco mais da metade dos alunos da população francofônica, no conjunto de todos os níveis de ensino; na população flamenga, essa abrangência chega a três quartos do alunado. (JAVEAU, 2005, p. 160)

O movimento laico alcançou vitórias, mas de forma bem peculiar. Em 1970, ele obteve do Estado o reconhecimento de “comunidades filosóficas não confessionais”. Desde 1981, as “casas da laicidade” passaram a ser financiadas com recursos públicos. Em 1991 foi criado um quadro de “conselheiros morais” na Forças Armadas, ao lado do quadro de capelães religiosos. Em 1993 a Constituição belga foi reformada no artigo que dispunha sobre a remuneração do clero pelo Estado, incluindo, então, os “delegados das organizações reconhecidas pela lei que ofereçam assistência moral segundo uma concepção filosófica não confessional”.

No entendimento de Haarscher (1998, p. 49), essa solução acabou por fazer do movimento laico belga uma espécie de religião ao lado das outras. Assim, os laicos contribuem para legitimar a posição dominante que o catolicismo desfruta no país. A remuneração dos “delegados laicos” pelo Estado dificulta, senão impede a crítica da insuficiente separação entre Estado e Igrejas. A disciplina de moral, ao invés de ser ministrada a todos os alunos, destina-se apenas aos que não se enquadram nos cultos reconhecidos, como se ela não fosse necessária para a formação de todos os cidadãos, independentemente de suas crenças religiosas.

O Centro de Ação Laica (Centre d´Action Laïque), constituído em 1972, para cada uma das duas comunidades linguísticas, é a cúpula de uma estrutura que guarda similaridade com as organizações eclesiásticas, a Conferência dos Bispos Católicos, o Sínodo das Igrejas Protestantes, o Consistório Central Israelita e o Executivo dos Muçulmanos da Bélgica.

Cada província tem sua Comunidade Filosófica não Confessional, reconhecida pelo CAL e pelo Estado. Em cada província, existe um Estabelecimento de Assistência Moral do Conselho Central Laico, instituição com personalidade jurídica de direito público, com gestão financeira e patrimonial. Nas municipalidades existem as maisons de la laïcité, por vezes criadas por iniciativa pública. Essas maisons oferecem uma assistência moral não confessional em hospitais, prisões, nas forças armadas e na cidade, em geral. Parte delas organizam cerimônias voltadas para ritos de passagem, como o apadrinhamento de crianças recém-nascidas, a festa da juventude laica, o casamento laico (distinto do casamento civil, obrigatório para todos) e funerais. São cerimônias para os que desejam marcar tais ritos de passagem sem os rituais religiosos.

O oferecimento desses rituais laicos começou em 1967, por ocasião de um grande incêndio numa loja de Bruxelas, no qual morreram 300 pessoas. As famílias dos mortos não religiosos tiveram de se juntar às dos religiosos ou prantear os seus isoladamente. Em reação a essas alternativas não convenientes, os laicos resolveram organizar seus próprios rituais para os momentos cruciais da existência.

O presidente do Centro de Ação Laica publicou artigo, em 2004, no qual apresenta a posição da instituição: a laicidade é uma concepção de vida, por vezes chamada de filosófica, fundada sobre os valores do livre exame, da emancipação, da cidadania e da justiça. Esses valores não são exclusivos dos não crentes, mas do humanismo, valores esses livres de toda referência sobrenatural, religiosa ou mágica. “Num Estado laico, a laicidade filosófica é uma concepção entre outras, que deve ser tratada com a mesma consideração, nem mais nem menos do que as concepções confessionais compatíveis com as liberdades públicas e os direitos fundamentais.” (GROLLET, 2004)

Os filiados às entidades que integram o aparato da laicidade reconhecida pelo Estado, liderado pelo CAL, são constituídos, essencialmente, de agnósticos ou ateus, que, sem rejeitar suas raízes judaico-cristãs ou muçulmanas, não aderem a uma transcendência vertical, rejeitam o mito de um Deus salvador e não conferem crédito aos pontífices das diversas religiões.

Para Grollet (2004), a laicidade do Estado significa imparcialidade, quando ele “não dá nada a ninguém”. Na falta da imparcialidade, vale a neutralidade, que é a “justiça distributiva”, isto é, “o reconhecimento de todas as comunidades filosóficas confessionais e não confessionais, com base em critérios claros e objetivos, e a repartição dos dinheiros públicos entre as comunidades reconhecidas com base em critérios igualmente objetivos.”

O CAL tem na educação pública uma prioridade de atuação, derivada da Liga do Ensino, da qual se originou, e das 11 instituições filiadas que convergem com essa posição. Nesse ponto, o CAL não defende que a educação pública seja uma opção em igualdade com as religiosas, mas que ela é o verdadeiro instrumento de emancipação intelectual e social, independentemente dos recursos financeiros das famílias dos alunos e de suas convicções.

Na avaliação de Janeau (2005, p. 163), a situação da laicidade na Bélgica é peculiar: o Estado se diz neutro não entre as disputas religiosas, mas entre essas e os laicos. Sua neutralidade consiste, então, numa espécie de regulação do equilíbrio entre as diversas religiões e os laicos. Aliás, é o próprio Estado quem atribui legitimidade a esses disputantes, mediante o mecanismo do reconhecimento. Todavia, esse equilíbrio é contestado pelo aparato laico, ao denunciar que os cerca de 86% dos recursos destinados à Igreja Católica justificam-se apenas por razões históricas e sua organização paroquial, não pela prática dos respectivos adeptos. O aparato laico recebe cerca de 8% dos recursos estatais e os demais cultos, somados, os restantes 4%. Com efeito, essa distribuição obedece a critérios diferentes, conforme os credos. Para os católicos, computa-se o número presumido de adeptos, enquanto que, para os demais, devem declarar os nomes de todos os seus filiados. Em 2008, 43% da população do país declarou-se católica, 12% muçulmana, 17% ateia e 10% agnóstica.

A situação dos muçulmanos como religião reconhecida pelo Estado não os priva de discriminação. Nos anos 1960, a Bélgica apelou para contingentes estrangeiros para aumentar a força de trabalho, principalmente trabalhadores muçulmanos de nacionalidade marroquina e turca. Apesar de sua participação estratégica no crescimento econômico da Bélgica, permanecem questões não resolvidas sobre rejeição à presença de práticas muçulmanas no país, como, por exemplo, a festa do sacrifício. O reconhecimento da religião muçulmana pelo Estado foi realizada no contexto da crise do petróleo, na qual as questões diplomáticas foram preponderantes. A direção religiosa islâmica foi deixada com a Grande Mesquita do Centenário, em Bruxelas, que, apesar de sua edificação imponente, ela não obteve liderança de toda a população islâmica. As interferências da Arábia Saudita e da Turquia, pretendendo exercer hegemonia sobre essa corrente religiosa, frustrou as iniciativas de substituição dessa direção por outra instância, promovidas pelo governo belga. Entre elas, estava a criação do Executivo dos Muçulmanos da Bélgica, por ocasião da revolução iraniana, com vistas, justamente, a manter um certo controle sobre os adeptos dessa corrente religiosa.

Os cerca de 600 professores para os ensino religioso islâmico, remunerados pelo Estado, são indicados por entidade hegemonizada pelo clero saudita, o que suscita reações no próprio meio muçulmano.

As reações ao uso do véu islâmico nos espaços públicos,[vi] bem como a resistência ao emprego de elementos tradicionais da arquitetura das mesquitas, como os minaretes, têm contribuído para fazer do islamismo uma religião de difícil integração. Autores há, como Torrekens (2005), que apontam a importação por setores da população belga de elementos da laicidade à francesa, especialmente na condenação do uso de símbolos religiosos nos espaços públicos. Para essa autora, o princípio da neutralidade, tal como é concebido na Bélgica, tende a rejeitar o fato de que o espaço público é um lugar de luta pelo reconhecimento de identidades. Mais do que um lugar de aparecer “em público”, esse espaço provém de uma interação histórica particular entre um Estado em construção e uma Igreja dominante, que chegaram a um compromisso quanto a suas relações e esferas de influência. Portanto, esse Estado é portador de uma identidade dominante. Daí que o princípio de neutralidade do Estado tende, atualmente, a se redefinir como argumento político tendente a rejeitar todas as outras formas de identidades culturais e religiosas. Cumpre notar que essa redefinição é feita por atores incapazes de perceberem as marcas concretas de sua própria religiosidade, mesmo que passada. Consequência disso é que só os outros (os islâmicos, no caso) são étnicos, no sentido de que são portadores de símbolos culturais e religiosos. Percebe-se, aí, a dificuldade da identidade nacional belga, já fraturada pelos conflitos entre flamengos e valons, que chegam próximos da fragmentação estatal, de integrar novos contingentes populacionais. (TORREKENS, 2005, p. 58)

Menos numerosos do que os muçulmanos, os imigrantes gregos de religião cristã ortodoxa tiveram seu credo reconhecido pelo Estado e não são vistos com a mesma hostilidade dirigida aos marroquinos e turcos.

As contradições jurídico-políticas do regime de subvenção estatal da rede católica de ensino e a propalada neutralidade religiosa do Estado laico fica patente quando se leva em conta a possível reivindicação de semelhante subsídio para uma rede de ensino islâmico, aliás a segunda religião praticada no território belga. Interrogações desse tipo já têm sido feitas, em termos hipotéticos, pois essa reivindicação islâmica não existe (ainda?). Algumas respostas têm sido positivas, mas predominam as negativas. Elas podem ser resumidas na ideia de que o catolicismo é parte da formação da Bélgica, enquanto que o Islã vem de fora, não é nacional. Um argumento claramente discriminatório, que padece de fundamento histórico, mas permite prever a emergência de conflitos mais fortes do que os existentes atualmente.

No que diz respeito às disciplinas “filosóficas”, o panorama sugere mudanças, ainda que não sejam imediatas.

A Central Sindical dos Trabalhadores nos Serviços Públicos-Seção do Ensino (Centrale Générale des Services Publiques-Enseignement) reivindica a não obrigatoriedade das disciplinas “moral não confessional” e religião nas escolas públicas, em proveito de uma disciplina comum a todos, que integre o questionamento filosófico, a educação para a cidadania e o diálogo entre as diferentes convicções.

A comunidade flamenga abriu a possibilidade de dispensa tanto do ensino religioso quanto da “moral não confessional”. No entanto, há dirigentes sindicais que resistem contra a dispensa das duas disciplinas concorrentes, nas escolas públicas. Eles alegam que essa possibilidade, se generalizada, pode acarretar problemas de desemprego de docentes. Essa, todavia, não é a posição oficial do CGSP-Enseignement.

Embora pouco intensa, há uma crítica ao pequeno envolvimento das organizações laicas pela efetiva laicidade do Estado belga, justamente pelo fato de que elas passaram a ser financiadas por ele como se fossem mais um dos cultos reconhecidos.

A despeito dos pilares de sustentação da Sociedade e do Estado belgas, a secularização da cultura avança e pressiona pela laicidade para todos. Como no caso do aborto, condenado pela Igreja Católica em qualquer situação. No entanto, em 1990, foi aprovada lei que despenalizou o aborto na Bélgica, se realizado até 12 semanas depois da concepção. Esse prazo pode ser maior se houver ameaça para a saúde da mulher ou no caso de grave anomalia do feto, casos em que deve haver diagnóstico de um segundo médico. As despesas devem ser reembolsadas pelas instituições previdenciárias, mesmo sendo do pillier católico. É a mulher que decide pelo aborto, independente de idade. Os médicos não estão autorizados a informar aos pais do aborto de menor, a não ser que sejam solicitados a isso. Há precauções, como a de que o aborto não poder ser realizado antes de seis dias depois da primeira consulta de um Centro de Interrupção Voluntária da Gravidez. Essa foi uma convergência da secularização da Sociedade com a laicidade do Estado.

BIBLIOGRAFIA

CENTRE d’ACTION LAÏQUE, http://www.laicite.be/

DALED, Pierre François. “Philosophie, sciences et fondaments laïques au 19ème siècle: le cas de l´Université Libre de Bruxelles”, Education Comparée (Louvain-La-Neuve), nouvelle série, vol I, 2008.

DRAELANTS, Hughes; DUPRIEZ, Vincent; MAROY, Christian. Le système scolaire, Bruxelles: CRISP, 2003.

GROLLET, Philippe. “Les deux facettes de la laïcité”, Politique – revue des débats, nº 33, Février 2004.

http://politique.eu.org/spip.php?article392

HAARSCHER, Guy. La laïcité, Paris: PUF, 1998.

JAVEAU, Claude. “La laïcité ecclesialisée: le cas de la Belgique”, WILLAIME, Jean-Pierre; MATHIEU, Sévérine (orgs). Des maîtres et des Dieux – écoles et religions en Europe, Paris: Belin, 2005.

MARTIN, Jean-Paul. “La Belgique: de l’affrontement laïques-confessionels au pluralism institutionnel”, in BAUBEROT, Jean (org), Religions et laïcité dans l´Europe des douze, Paris: Syros, 1994.

TORREKENS, Corinne. “Le pluralism religieux en Belgique, Diversité Canadienne, vol. 4, nº 3, automne 2005.

http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=1&ved=0CCkQFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.ulb.ac.be%2Fsocio%2Fgerme%2Fdocumentsenligne%2Fpluralismereligieux.pdf&ei=3NUZU_H7LZSQkAfS5IGADw&usg=AFQjCNHS-aZkQq2c6z6siR-ybO8rjlNWtQ&sig2=PyE-zFgFkTuSJhklcH3hEA

UYTTENDAELE, Marc. D´un État neutre à un État laïque.

http://www.lalibre.be/debats/opinions/d-un-etat-neutre-a-un-etat-laique-51b8f4abe4b0de6db9c8adec

[i][i] Para ser reconhecido, um culto deve atender às seguintes condições: ter um número significativo de adeptos; dispor de um órgão representativo que possa servir de interlocutor com as autoridades; estar estabelecido no país há várias décadas; ter uma utilidade social e não desenvolver atividade alguma contrária à ordem pública. São condições que contêm alta dose de ambiguidade e pelo menos uma difícil de atender: a existência de autoridade unificada para servir de interlocutor com as autoridades, fácil apenas para os católicos.

[ii] Uma lei de 1983 estabeleceu a obrigatoriedade escolar dos 6 aos 15 anos, em tempo completo; dos 16 anos 18 anos a obrigatoriedade escolar prossegue em tempo parcial, inclusive mediante contratos de aprendizagem no regime de alternância escola-trabalho. (DRAELANTS, et alii, 2003, p. 28-29)

[iii] Essa influência ocorreu sem que a Igreja Católica conseguisse reaver os bens desapropriados durante a ocupação napoleônica.

[iv] Tratou-se, na realidade, de uma refundação de universidade criada em 1425, por decreto papal. Suprimida em 1797, a instituição foi reativada e assumida pelo Estado em 1816. A Universidade Católica, refundada em 1834 foi sediada, inicialmente, em Malines, e posteriormente transferida para Louvain.

[v] Acessado em 05/03/2014 no endereço http://www.ulb.ac.be/ulb/greffe/documents/statutjuridique.html

[vi] Esse tipo de reação tem sido bem mais suave do que na França, mas, mesmo assim, existe. No caso das escolas públicas, cada estabelecimento decide sobre a tolerância da presença de alunos portando símbolos religiosos. Na maior parte dos casos, esses símbolos são proibidos no interior das escolas públicas belgas.

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