Campo religioso é como os sociólogos designam o espaço social onde agentes e instituições disputam o monopólio nas relações com o sagrado. Portanto, um campo de conflito, no qual cada religião se apresenta como verdadeira, autêntica, até mesmo como tendo sido criada diretamente pela divindade. As demais, em consequência, são consideradas fruto da ignorância, do desvio do verdadeiro caminho ou de interesses não autenticamente religiosos. Esses conflitos aparecem claramente, quando a militância religiosa é mais ostensiva. Ou são dissimulados por ideologias que enfatizam as semelhanças entre os valores e as práticas religiosas, bem como a presumida busca dos mesmos fins, por caminhos diferentes.
O campo religioso nasceu, no Brasil, com a conquista portuguesa do território e da gente que nele habitava. A conquista lusitana se deu no bojo do movimento da Contra-Reforma. Decidida a retomar a hegemonia perdida com a Reforma Protestante, no século XVI, a Igreja Católica criou novas organizações (das quais a mais importante foi a Companhia de Jesus) e aumentou o empenho na conversão dos povos recém-incorporados aos domínios das monarquias ibéricas. Foi assim que o campo religioso nasceu, no Brasil, como conflito, ou melhor como combate dos “Soldados de Cristo” contra a “ignorância” dos indígenas e a dimensão religiosa de sua vida. A violência simbólica foi a tônica da evangelização, que utilizou formas sofisticadas, como o teatro dos missionários, e figuras de alta eficácia simbólica, como a invenção de Tupã para facilitar a assimilação da figura do Deus Cristão. Contra os africanos escravizados, a violência material que marcava sua condição dispensou maiores esforços com a violência simbólica.
Quando comparado a outros países, o campo religioso é, no Brasil, especialmente complexo, pois abrange religiões de diferentes graus de institucionalização e de distintas tradições culturais. Desde o monoteísmo judaico-cristão até o politeísmo indígena ou de origem africana, e as mais recentes incorporações de tradições orientais, inclusive de religiões que não possuem a noção de deus. Os sincretismos são muitos e variados: o Catolicismo popular, as religiões afro-brasileiras, são todas fórmulas sincréticas. Não bastasse isso, as mudanças de religião que os indivíduos experimentam durante sua vida são elementos adicionais na complexidade desse campo. As religiões têm graus muito diferentes de institucionalização, com a burocracia da Igreja Católica ocupando o grau máximo. No extremo oposto estão as religiões indígenas e as afro-brasileiras, desprovidas de organização formal, sem uma burocracia, no sentido sociológico do termo. No meio do caminho, estão as Igrejas Evangélicas Pentecostais, algumas com maior grau de institucionalização, outras menor, pois a criação de nova igreja depende da iniciativa e da liderança do pastor ou do ministro dissidente, inaugurando sua própria confissão.
Embora o campo religioso busque autonomizar-se dos demais campos, ele tem entradas em outros. No campo político, sua entrada almeja impor a toda a sociedade suas orientações de ordem moral, assim como assegurar privilégios, em especial os econômicos, os políticos e os educacionais. No campo econômico, umas sociedades religiosas, mais do que outras, acumulam os recursos financeiros que lhes propiciam sustentar suas atividades, tanto as propriamente religiosas quanto as de outro tipo. No campo educacional, difundem suas crenças em escolas próprias e nas escolas públicas, mediante disciplinas do currículo. E formam elites dirigentes nas universidades Católicas, Presbiterianas, Metodistas, Luteranas e em faculdades de várias outras confissões. Ainda aqui, há diferenças importantes: a entrada da Igreja Católica nos campos político, econômico e educacional é muito maior do que a das Igrejas Evangélicas; e a destas, por sua vez, maior do que a das religiões de origem africana.
No Brasil de hoje, o campo religioso sofre grandes mudanças. A mais notável é a queda de adeptos do Catolicismo, que passaram de 93,0% de declarantes no Censo Demográfico de 1960, para 73,4% em 2000. Nos últimos anos, no Rio de Janeiro e na Amazônia, de um modo geral, a maioria da população já não se declara católica, mas o Catolicismo permanece hegemônico na zona rural e no Nordeste do país. Em complemento à queda dos católicos, verifica-se o rápido crescimento das Igrejas Evangélicas, que passaram de 4,0% de adeptos, no Censo de 1960, para 15,4% em 2000. Também importante, do ponto de vista quantitativo, é o declínio do número dos que se disseram adeptos das religiões afro-brasileiras. Os que se declaram “sem religião” passaram de 0,5% em 1960 a 7,4% em 2000.
A diminuição do número de católicos tem sido explicada por efeito do alto grau de institucionalização da Igreja, o que não lhe daria a agilidade necessária para se adaptar com rapidez às novas situações sociais, culturais e econômicas do país. Ela permaneceu dominante no Brasil, durante séculos, mas sua reorientação, desde uma referência elitista para uma “opção preferencial pelos pobres”, após o Concílio Vaticano II, afastou-a, paradoxalmente, das classes populares. Isso porque o “Catolicismo socialmente engajado”, baseado na Teologia da Libertação, que disputou com os comunistas, nos anos 1960, a direção política dos movimentos sociais, pela ação das comunidades eclesiais de base, enfraqueceu os elementos místicos da experiência religiosa, justamente quando cresceu a procura por eles.
A mudança no perfil religioso da população está estreitamente ligada aos grandes movimentos migratórios ocorridos no país nos últimos 50 anos, seja no sentido inter-regional seja no sentido rural/urbano. Tanto nas regiões de expansão da fronteira rural quanto nas periferias das cidades, notadamente nas regiões metropolitanas, as populações migrantes ali estabelecidas, além de se desprenderem das relações de solidariedade nos locais de origem, deparam-se com uma fraca presença dos órgãos estatais instalados nos locais de destino, bem como carecem de políticas de desenvolvimento social. Vivendo, em sua grande maioria, em condições muito precárias, beirando quase sempre a miséria, e desenraizadas culturalmente, tais populações desenvolvem novas disposições sociais e novas tentativas de construção de suas identidades culturais, no que a religião ocupa lugar de relevo.
São as Igrejas Evangélicas, especialmente as Pentecostais, que têm apresentado alternativas religiosas significativas para os mais pobres, justamente aqueles onde se dá o maior crescimento populacional. Daí que o crescimento do Pentecostalismo é maior nas regiões economicamente mais dinâmicas, o que inclui as regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nas regiões mais pobres e menos expostas à mudança social, o Catolicismo permanece estável.
Mas, a Igreja Católica tem desenvolvido estratégias de retomada de sua posição, hoje ameaçada pelas Igrejas Evangélicas, inclusive mediante a incorporação de suas práticas, como, por exemplo, o emprego dos meios de comunicação de massa, com destaque para a televisão. Ao mesmo tempo em que o “Catolicismo socialmente engajado” foi contido, após o fim da ditadura militar, para o que a pressão do Vaticano foi decisiva, irrompeu um novo movimento, a Renovação Carismática Católica, proveniente dos Estados Unidos, de forte inspiração pentecostal. Em contraposição àquele, predomina entre os carismáticos uma religiosidade de caráter intimista e pietista.
A despeito de sua unidade e do forte centralismo, a Igreja Católica permanece, no Brasil, informalmente estruturada segundo uma dupla polarização: os “progressistas”, herdeiros do “Catolicismo socialmente engajado”, anatemizado pelo Vaticano, e o “conservadorismo”, que compreende tanto os resistentes ao aggiornamento sociale quanto os carismáticos.
As religiões afro-brasileiras apresentam dificuldades de análise não encontradas nas da tradição cristã. Por seus praticantes terem sido, durante séculos, obrigados ao sincretismo, como estratégia de sobrevivência diante da repressão religiosa e política, ainda hoje muitos deles se declaram católicos. Mesmo se a repressão já não existe, muito pelo contrário, é comum que os adeptos do Candomblé e da Umbanda assumam-se também como católicos. Por isso, o número de praticantes das religiões afro-brasileiras encontra-se muito subestimado nos censos demográficos. Nos últimos anos, as manifestações culturais afro-brasileiras têm recebido forte apoio do Poder Público, como parte das políticas de inclusão social. Um de seus efeitos foi a promulgação da lei no. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que determinou a inserção, no currículo do ensino fundamental e médio, da “História e Cultura Afro-Brasileira”, que dificilmente deixará de incluir a dimensão religiosa.
Os setores sociais onde o Pentecostalismo cresce são, em geral, os mesmos nos quais há maior número de praticantes das religiões afro-brasileiras, isto é, entre os mais pobres. Como o Candomblé e a Umbanda são religiões desprovidas de organizações articuladoras das comunidades de culto, sem clero organizado, que não recorre ao proselitismo nem à mídia televisiva, elas ficam particularmente vulneráveis aos ataques de Igrejas Pentecostais, que disputam com elas o mesmo público, pregando uma “guerra espiritual” contra as crenças consideradas demoníacas. Diante dos crescentes ataques Pentecostais, aquelas religiões, dotadas de baixo valor simbólico na sociedade brasileira, perdem adeptos, a despeito do apoio político oferecido pelo Poder Público. Além disso, a retração das religiões afro-brasileiras tem sido facilitada pelo fato das Igrejas Pentecostais, apesar de adotarem o mito da “pureza da fé”, realizarem, de fato, um tipo de sincretismo, que possui afinidades com a religiosidade de origem africana, ainda que, ao contrário desta, projetem uma imagem do mundo polarizado pelo bem e pelo mal. Tais afinidades explicariam a transferência de adeptos entre religiões tão diferentes entre si.
Por fim, um breve comentário sobre os que se declaram “sem religião”. Embora eles não sejam, necessariamente, ateus ou agnósticos, compreendendo os que recusam as instituições e as crenças disponíveis no campo religioso, o aumento de seu número é expressivo. Enquanto que, em 1991, declararam-se “sem religião” 4,8% da população, em 2000 essa proporção chegou a 7,4%. Embora sejam poucos, em números absolutos, a velocidade de crescimento é maior do que a dos adeptos das Igrejas Evangélicas.
Quanto aos conflitos do campo educacional, eles estão explícitos nas telas de televisão. Não só nas emissoras de propriedade de sociedades religiosas, Católicas e Evangélicas, que disputam os crentes em suas próprias residências, como, também, entre algumas dessas emissoras e outras, não necessariamente religiosas, por causa dos índices de audiência. No momento, é ostensiva a adesão da TV Globo à Igreja Católica, em busca de apoio à luta contra a TV Record, da Igreja Universal do Reino de Deus, que já ameaça a liderança que aquela emissora teve durante décadas. O efeito econômico e político dessa mudança é previsível, em especial pela proximidade da TV Pentecostal com o Partido Republicano Brasileiro.