CANALIZAÇÃO RELIGIOSA DO VOTO POPULAR

Não é de hoje que bispos, padres e pastores abusam de sua autoridade religiosa e canalizam o voto dos eleitores, principalmente dos mais humildes. Nos anos 1930, o cardeal Leme organizou a Liga Eleitoral Católica, formada pelos candidatos que apoiavam a plataforma política da Igreja. Aqueles que o fizessem, recebiam a chancela de poderem receber votos dos católicos. Nos demais, os fiéis estavam proibidos de votar. A ideia dos católicos dos anos 30 de formarem um Partido Católico foi deixada de lado, assim como fracassou a tentativa de sua atuação na política pela via de um Partido Democrata Cristão. Contudo, recentemente, o Partido Republicano Brasileiro (PRB) e o Partido Social Cristão (PSC) foram hegemonizados por Igrejas Evangélicas rivais.

Em diversos partidos, cresce o número de candidatos que fazem de seu status religioso elemento de marketing político-eleitoral, incorporando o título religioso ao seu nome – pastor X, padre Y, missionário Z, bispo T. Mas, não nos enganemos, se essa prática é hoje mais comum nos meios evangélicos, ela originou-se entre os católicos. Se não houve bispos parlamentares no período republicano, muitos padres mantiveram o título religioso como parte de seu nome próprio.

Aqui vão dois exemplos. Em 2002 o Estado do Rio de Janeiro elegeu senador o bispo Marcelo Crivella, da Igreja Universal do Reino de Deus; em 1994 o Estado do Paraná elegeu deputado o padre Roque Zimermann, da Congregação dos Missionários da Sagrada Família. Que importância prática tem isso ? Muita.

O bispo-senador Crivella apresentou projeto de lei, em tramitação, modificando a “Lei Rouanet”, de 1991, que beneficia museus, bibliotecas, arquivos e entidades culturais, com parte dos recursos do imposto de renda devido pelas empresas. Pelo projeto do bispo-senador, os “templos de qualquer natureza ou credo religioso” também seriam beneficiados por esses recursos, já parcos para a cultura. Ou seja, as atividades religiosas seriam beneficiadas, diretamente, pelos recursos financeiros provenientes da renúncia fiscal. Além delas já desfrutarem da isenção fiscal, por dispositivo constitucional, receberiam uma injeção direta de recursos devidos pelas empresas ao Estado.

O padre-deputado Roque foi o relator do projeto que mudou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1997, justamente o que suprimiu a condição “sem ônus para os cofres públicos” do ensino religioso nas escolas públicas e inseriu no texto da LDB a qualificação do ensino religioso como sendo “parte integrante da formação básica do cidadão” – os pais que pedirem dispensa dessa disciplina para seus filhos teriam de se contentar com uma formação incompleta…

Mas, além de atuarem para obter apoio financeiro para as atividades religiosas, pago pelos crentes de todas as religiões, assim como pelos não crentes, os parlamentares agentes religiosos formam um bloco anti-laico no Congresso Nacional, cujo efeito se espraia para todos os campos: moral pública, currículo escolar, pesquisa científica, etc.

Nas eleições de 2006, no Rio de Janeiro, a campanha da Igreja Católica contra a candidata ao Senado, a médica Jandira Feghali, teve como foco seu apoio a um projeto de lei de descriminalização do aborto. Panfletos foram distribuídos nas igrejas e mensagens fluíram pela Internet, veiculando argumentos religiosos contra a candidata, com marcantes efeitos nos resultados: de favorita, ela passou a derrotada. Menos direto, mas não menos efetivo, é o lema “católico vota em católico” ou “irmão vota em irmão”, que alguns candidatos proferem na propaganda via rádio e TV, lema esse que rende maiores benefícios quando proclamado nos locais de culto, diretamente aos eleitores.

As últimas eleições presidenciais, de 2010 e 2014, também servem de exemplo para a busca pela canalização religiosa do voto popular. Em 2010, a intromissão da religião se fez notar com manifestações em púlpitos e na internet contrárias à então candidata Dilma Rousseff, por conta de declarações que tinha dado, antes da candidatura, favoráveis à descriminalização do aborto. Imediatamente, o candidato José Serra passou a se apresentar como um candidato contrário ao aborto, e liderenças religiosas contrárias e favoráveis a cada um deles passaram a se manifestar com seus posicionamentos, na tentativa de influenciar os fiéis. Já a eleição de 2014, contou inclusive com um candidato do clero evangélico. E em meio às polêmicas envolvendo o posicionamento conservador de algumas candidaturas e a filiação religiosa da evangélica Marina Silva, chegou a haver um debate entre os disputantes na rede católica de TV e rádio, sob atenta audiência dos bispos e fiéis católicos. Além disso, foi uma eleição em que ocorreram visitas de todos os candidatos a templos de diferentes igrejas, especialmente as evangélicas.

O “voto de cabresto”, manejado pelos “coronéis” do Brasil arcaico, foi reeditado na canalização religiosa do voto popular pelos bispos do Brasil contemporâneo.

O resultado da mistura de religião e política, como se vê em países onde isso acontece, é o pior possível – preconceito, intolerância, discriminação, massacres, ditadura.

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