Caros conselheiros, caras conselheiras,
Gostaria de me posicionar, na qualidade de alguém que participou como parecerista da primeira versão da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), quanto à presença do Ensino Religioso na mesma, no intuito de contribuir para a análise deste aspecto polêmico da proposta. O que se segue prescinde do debate sobre a legitimidade ou não da presença do ER no texto da BNC e na Educação Básica.1
O primeiro ponto sensível e problemático do ER na BNC é a ampliação da presença do ER no sistema de ensino que o texto acaba por pressupor ou induzir. Trata-se do problema da definição da carga horária, questão com relação a qual o CNE já se pronunciou por diversas vezes, atribuindo sua responsabilidade a Estados e Municípios, como no Parecer CNE/CEB nº 16, aprovado em 1º de junho de 1998. Através da BNC, o ER ganha, com uma canetada, aquilo que seus defensores jamais teriam sonhado conseguir pelas vias políticas usuais: a projeção de sua ampliação para os nove anos do Ensino Fundamental em todo o território nacional.
O segundo ponto diz respeito às exigências legais para a determinação do conteúdo curricular do ER. Constata-se, de imediato, a presença exclusiva de pareceristas ligados ao FONAPER (Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso), na equipe responsável pela elaboração do componente curricular do ER.2 Qual a justificativa para esta formação de equipe tão limitada e coesa? Não há nenhuma. A BNC não segue a legislação neste caso, uma vez que a reformulação do artigo 33, da LDB, pela lei nº 9.475/97 (22 de julho de 1997) afirma que “os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso” (grifo nosso). Como pode o MEC convidar apenas membros do FONAPER, uma entidade católica, para representar na BNC as diferentes denominações religiosas de todo o país? Seguindo a LDB, o mencionado Parecer CNE/CEB nº 16 ratifica que a carga horária do ER só pode ser determinada em cada sistema de ensino, consultadas as mais diferentes denominações religiosas, e outros pareceres do CNE reforçam a restrição da definição de conteúdo do ER às redes locais de ensino.3
Pelos motivos acima, constata-se que suprimir o ER da BNC é uma exigência legal, para além do debate sobre o mérito da existência ou não do ER no currículo da Educação Básica. Não fosse, contudo, a retirada do componente curricular ER da BNC uma exigência legal, seria necessário, no mínimo, reformulá-lo integralmente, se tomamos como base a última versão do texto apresentada. Vejamos. Em primeiro lugar, explicito minha premissa de que todos os conteúdos e objetivos eventualmente razoáveis e importantes do ER que possamos encontrar no texto apresentado na BNC (e eles são poucos) deveriam ser antes trabalhados nos componentes curriculares de filosofia, história e ciências sociais. Se o objetivo do ER, tal como defende o texto da BNC, não é proselitista, não há nada que o ER possa acrescentar às diversas abordagens antropológicas, sociológicas e filosóficas acerca do fenômeno religioso, enquanto proposta de reflexão, discussão, sensibilização, etc, visando a compreensão desse fenômeno e o respeito à diversidade. Mas a brevissíma apresentação que faço, a seguir, dos conteúdos e objetivos do ER não entra no mérito dessa questão.
Destaco somente, através de alguns exemplos, o enorme grau de generalidade e vagueza dos conteúdos e objetivos oferecidos como componente curricular ER. Logo nos primeiros objetivos, lemos: « Perceber-se como pessoa dependente de outras pessoas e das relações que se estabelecem no coletivo familiar, escolar, na instância religiosa, comunitária e no meio ambiente. » « Reconhecer que o ‘eu’ estabelece relações com a natureza e com a sociedade mediadas pelo corpo, pelas linguagens e pelas especificidades histórico-sociais. » « Reconhecer-se como membro de um núcleo de convivência familiar e de organizações sociais, onde coexistem diferentes corporeidades, identidades, crenças, práticas, costumes, etc. etc. etc. »
Note-se que os objetivos acima são direcionados ao primeiro ano do Ensino Fundamental. Essa proposta é evidentemente inaceitável para um Estado laico que tenha o mínimo de cuidado com a formação básica de suas crianças. Sua manutenção significa deixar espaço para todo o tipo de proselitismo. E esses objetivos vagos e generalistas não se restringem às crianças pequenas, eles reaparecem até no nono ano: « Organizar e projetar a própria vida na coletividade, considerando princípios éticos, estéticos, econômicos, políticos e socioculturais. » Não é necessário continuar. Há, na quase totalidade do componente curricular ER, um alto grau de generalidade e arbitrariedade que fala por si mesmo. Ainda quando aborda o conteúdo stricto sensu religioso, encontramos formulações como: « Reconhecer que doutrinas religiosas embasam a manutenção de cosmovisões religiosas e a transmissão de seus conteúdos. » (!)
Pelo exposto, somos de parecer que a proposta do ER da BNC é teórica e pedagogicamente descabida, além de não obedecer aos dispositivos legais, incluindo aqueles emanados do próprio CNE. Manter o ER na BNC, ao menos tal como formulado até aqui, é um desrespeito à inteligência e à boa fé de todos os brasileiros e todas as brasileiras; é atentar contra a responsabilidade do Estado no que toca à oferta de um ensino público de qualidade, laico e gratuito, tal como determinado pela nossa Constituição. Atenciosamente,
Filipe Ceppas (parecerista da BNC, 1ª versão) Professor adjunto da UFRJ (FE / PPGF) Professor colaborador no PPFEN-CEFET Coordenador do NuFFC e do LEFGB http://lattes.cnpq.br/9172119452015896 cel (21) 99466 2669 Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 2017 1
Quanto à esta questão, entendo ser discutível a tese de que, prevista em lei a oferta obrigatória (com matrícula opcional) do ER na Educação Básica, seja forçoso inserir também tal conteúdo curricular no texto da BNC. A inserção do Ensino Religioso no currículo foi vitória de lobby, pressão política e estratégias oportunistas de um grupo pouco representativo dos grupos religiosos nacionais e da sociedade brasileira em geral, e entendo que devemos pressionar de todas as formas possíveis para retirar totalmente esta “disciplina” do currículo da escola pública, laica e gratuita.
Para uma exposição sintética dos argumentos que subsidiam essa posição, ver o manifesto “Laicidade e Educação Pública: em Defesa da Aplicação Integral dos Limites Constitucionais ao Ensino Religioso nas Escolas Públicas Brasileiras”, disponível em https://bit.ly/2XumGhH
Ver, ainda, Luiz Antônio Cunha (2014), Hegemonia e confronto na produção da segunda LDB: o ensino religioso nas escolas públicas. Pro-Posições, 25(1), 141-159, disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73072014000100008&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
Ver Luiz Antônio Cunha, “A Entronização do Ensino Religioso na BNCC”, disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v37n134/1678-4626-es-37-134-00266.pdf
O parecer CES 1.105/99, por exemplo, menciona “a conseqüente impossibilidade de definir diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores para o ensino religioso e critérios de avaliação dos cursos que não discriminem, direta ou indiretamente, orientações religiosas de diferentes segmentos da população e contemplem igualmente a diversidade de conteúdos propostos pelos diferentes sistemas de ensino.” Aqui, é preciso levar em conta não haver diferença prática significativa entre fornecer conteúdos para a formação dos professores do ER e oferecer conteúdos e objetivos curriculares para toda a Educação Básica.