Leia abaixo o texto de Natália Braga de Oliveira, professora do Colégio Pedro II e ativista do coletivo Escola Sem Machismo, escrito especialmente para o OLÉ – Observatório da Laicidade na Educação, sobre o Colégio Pedro II e recentes ataques sofridos por esta instituição, que estão contando inclusive com apoio do arcebispo do Rio de Janeiro, D. Orani Tempesta, em vídeo divulgado nas redes sociais (clique aqui para ler a respeito).
Colégio Pedro II: trilhando caminhos de inclusão
Natália Braga de Oliveira
Professora do Departamento de Sociologia do Colégio Pedro II
Mestre em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA – IFCS – UFRJ
Coletivo de Educadoras Escola Sem Machismo
Rafaela Damasceno foi uma das primeiras transexuais a entrar em uma universidade pública no Brasil, em 1999. O que parecia uma grande conquista, no entanto, acabou virando pesadelo. Após sofrer discriminação e perseguição em sala de aula, Rafaela, hoje com 39 anos, resolveu abandonar o curso de geografia na Universidade Federal de Goiás (UFG). “Eu era vista como se fosse um bicho num zoológico. As pessoas iam lá na faculdade que eu estudava, passavam por mim no corredor, chegavam no final do outro corredor e perguntavam: ‘onde é que está a transexual que estuda aqui?’. Eu me sentia como um animal. Não parecia ser normal eu estar dentro da universidade.” Rafaela largou os estudos a um ano de se formar. Ela conta que, à época, ainda não havia conseguido trocar o nome em todos os documentos. Alguns professores se recusavam a chamá-la pelo nome social e outros, simplesmente, “pulavam” o seu nome na hora da lista de chamada. “Havia uma professora que dizia que naquela sala de aula tinha gente que tinha que estar em outro lugar, não na universidade. Tinha que estar no salão de cabeleireiro ou na cozinha de alguém”, comenta. Hoje, Rafaela estuda para entrar na faculdade de novo e concluir a graduação em geografia. Ela também quer ingressar no mestrado.i
O relato acima não pode ser compreendido como um caso isolado, infelizmente. Em pesquisa realizada sobre transfobia em grupos específicos do Facebook, a professora da rede estadual de São Paulo, Fernanda Vedrossiii, pode constatar que 90% dos entrevistados sofreram algum tipo de preconceito no ambiente escolar por serem transgêneros; destes, 69% sofreram agressões físicas e 34% afirmaram não ter recebido nenhuma ajuda no momento ou depois da agressão. Ainda, 65% dos entrevistados pararam de estudar em função do preconceito, destes 43% abandonaram a escola no Ensino Médio e 94% não conseguiu voltar a estudar. Muito embora, esses índices não representem o total da população transgênera – a pesquisa não utilizou métodos de amostra populacional – já vislumbram uma triste realidade: o indivíduo transgênero é cotidianamente expulso das escolas brasileiras. Não de maneira formal, mas através de violências físicas e simbólicas. A não aceitação de transgêneros no ambiente escolar também implica em uma exclusão estrutural desse grupo, pois os indivíduos deixam de ter acesso a instituições que podem promover mobilidade, como a escola e a universidade, dificultando o acesso a profissões melhores remuneradas. Existe também certa invisibilidade ou silêncio a respeito do tema, tratado como tabu em muitas escolas e materiais didáticos. Pois, a cultura escolar é frequentemente marcada por um caráter monocultural que invisibiliza as diferenças, mas que não faz com que elas deixem de existir.iiiEssa invisibilidade acaba por corroborar para a manutenção de mecanismos de exclusão e de violência, no ambiente escolar e fora deleiv.
Tal realidade de violência e exclusão no universo escolar vai de encontro a uma perspectiva de convivência harmoniosa, necessária para a garantia da diversidade; ao mesmo tempo, não condiz com princípios fundamentais que norteiam a organização do Estado brasileiro, presentes na Constituição Federal de 1988. Em nossa carta magna, a educação é apresentada como direito de todos, objetivando o pleno desenvolvimento da pessoa (Art. 205) e, para isso, deve garantir igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (Art. 206, Inciso I). O Brasil também é signatário de diversos tratados internacionais que objetivam a construção e a defesa dos direitos humanos, a começar pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que proclama em seu Artigo I: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.” Mas, como podemos promover igualdade de condições, que garantam o pleno desenvolvimento de cada estudante, se algumas identidades são negadas no ambiente escolar? Como garantir a dignidade e permanência de estudantes transgêneros, se a escola os violenta? Como tornar realidade a educação como direitos de todos?
No Colégio Pedro II, ao menos desde 2014, estudantes transgêneros apresentam a demanda pelo fim da binaridade dos uniformes, recebendo apoio de boa parte da comunidade escolarv. A portaria que definia, naquele momento, o uso dos uniformes escolares distinguia – através de uma lógica binária masculino-feminino, ancorada no sexo biológico – o vestuário dos e das estudantes, impedindo a expressão de identidades trans e/ou não binárias. Faz-se necessário o entendimento de que a busca pelo reconhecimento da identidade é fruto da percepção da discriminação sofrida por determinados grupos. O reconhecimento da identidade, então, se materializa como “bandeira” na luta contra a opressão, afirmando a esses grupos seus espaços e seus direitos à cidadania. Por outro lado, desafiam as posições privilegiadas das identidades hegemônicas.vi Desse modo, buscando atender a demanda estudantil, em julho deste ano (2016), a reitoria do colégio publicou a Portaria nº 2449/2016vii, na qual estabelece o fim da binaridade no uso dos uniformes. Assim, a partir daquele mês, estudantes estão permitidas e permitidos a adotar a saia como uniforme, usar a camisa branca tradicional com ou sem viés azul, independente do sexo biológico. Tal medida objetiva, como indicado no documento, garantir a igualdade e a diversidade. No entanto, tem provocado reações extremadas, que se acentuam em função de certo sensacionalismo midiático e de boatos divulgados nas redes sociais. Como exemplo, podemos citar a reportagem falaciosa e desonesta da revista Isto É, “Colégio Pedro II: o colégio dos absurdos”viii, onde fatos são distorcidos e apenas a versão de um pequeno grupo de responsáveis é apresentada, promovendo uma campanha difamatória contra a instituição. Boatos e reportagens que confundem ao mesmo tempo em que escondem o verdadeiro propósito da portaria: a inclusão.
Ignorando tal propósito, grupos de responsáveis, próximos a movimentos autointitulados de “direita”, organizaram uma primeira manifestaçãoix, em setembro passado, contra o que eles denominam de “ideologia de gênero” no Colégio Pedro II. Neste mês (novembro de 2016), uma nova manifestação está sendo convocada para o dia 15, contando agora com o apoio da Igreja Católica. Em vídeox que vem sendo divulgado nas redes sociais, o Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Orani Tempesta, convoca a população a participar do ato, que diz se tratar de uma defesa da família e do respeito à liberdade. É Importante observar que o temos em disputa são duas perspectivas de mundo. A primeira, que fundamenta a decisão da reitoria do Colégio Pedro II e norteia boa parte dos estudos de gênero, está assentada em princípios éticos, da convivência e do respeito à diversidade. Princípios consonantes com os diferentes tratados acerca dos direitos humanos e que, de maneira geral, buscam garantir o respeito à dignidade humana, sem restrições. A segunda concepção se assenta em uma moral particular, pertencente a certos grupos da sociedade, mas que, no entanto, se pretende impor como universal, negando a alteridade característica das sociedades contemporâneas.
Vale ressaltar que, ao apresentar à sociedade uma única possibilidade de entendimento de família e construção de identidade, propõe-se um entendimento ideológico dessas categorias; pois, a partir de um olhar idealista da realidade social, essencializa o que é diverso e naturaliza o que é produto de arranjos sociais. No campo legislativo e na elaboração de políticas públicas, dever-se-ia predominar a laicidade e a pluralidade de pensamento. As reações que temos observado à ampliação de direitos, no entanto, agem no sentido contrário, negando o outro ao tentar impor suas verdades de natureza religiosa. Os discursos daqueles que se opõem ao que chamam de ideologia de gênero insistem no viés biológico para tratar das diferenças e assimetrias sociais de homens e mulheres, utilizam a retórica para inverter semanticamente conceitos e tratam educadores e formuladores de políticas educacionais como inimigos; se mostram, assim, incapazes de dialogar.xi
Para promover a igualdade de condições, devemos saber conviver com as diferenças, o que não é fácil, já que padrões de comportamento são inculcados em nós desde a primeira infância e nos fornecem determinadas leituras de mundo sobre bom e mau, certo e errado. Por isso, a educação formal deve ser responsável por promover valores éticos, valores que garantam a convivência harmoniosa entre diferentes. Não é objetivo da educação que estudantes abandonem suas convicções morais e religiosas, pelo contrário, a educação pautada pelos princípios dos direitos humanos entende que os mais diversos “olhares para o mundo” tem espaço na escola, desde que saibam construir uma convivência dialógica. A medida adotada pelo Colégio Pedro II tem como objetivo ampliar direitos das minorias, incluindo-as através da permissão de que os estudantes usem o uniforme de acordo com suas identidades de gênero; está amparada legalmente em tratados sobre direitos humanos, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 e na Constituição Federal de 1988, como informa a Nota Oficial da Seção de Supervisão e Orientação Pedagógica (SESOP Geral) e da Pró-reitoria de Ensino (PROEN) do Colégio Pedro II;xii é também resultado da luta por reconhecimento identitário de minorias sociais e dos debates especializados nos campos pedagógicos e dos estudos de gênero. O colégio, dessa forma, trilha o caminho certo na garantia de uma educação democrática que atenda a todas e todos.
iDisponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-11/preconceito-afasta-transexuais-do-ambiente-escolar-e-do-mercado-de Acesso em: 07 de novembro de 2016. (ADAPTADO)
ii Disponível em: http://monografias.brasilescola.uol.com.br/educacao/transfobia-no-ambiente-escolar.html Acesso em: 07 de novembro de 2016.
iii CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. In: MOREIRA, Antonio Flávio. CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2016.
iv Disponível em: http://www.nlucon.com/2016/11/rede-trans-contabiliza-pela-1-vez.html Acesso em: 07 de novembro de 2016.
v Disponível em: http://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/meninos-do-colegio-pedro-ii-vao-escola-de-saia-em-apoio-colega-transexual-13893794 Acesso em: 07 de novembro de 2016.
vi MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa. CÂMARA, Michele Januário. Reflexões sobre currículo e identidade: implicações para a prática pedagógica. In: MOREIRA, Antonio Flávio. CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2016.
vii Disponível em: http://www.cp2.g12.br/images/comunicacao/2016/Setembro/portaria2449.pdf Acesso em: 07 de novembro de 2016.
viii http://istoe.com.br/colegio-pedro-ii-o-colegio-dos-absurdos/
ix Disponível em: http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2016-09-29/pais-realizam-protesto-contra-uso-de-saia-por-alunos-do-colegio-pedro-ii.html Acesso em: 07 de novembro de 2016.
x Disponível em: http://www.esquerdadiario.com.br/Arcebispo-do-Rio-convoca-ato-contra-ideologia-de-genero Acesso em: 07 de novembro de 2016.
xi OLIVEIRA, Alcilene Cavalcante. Apresentação. In: DESLANDES, Keila. Formação de professores e direitos humanos: construindo escolas promotoras da igualdade. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
xii Disponível em: http://www.cp2.g12.br/images/comunicacao/2016/Setembro/Nota%20SESOP.pdf Acesso em: 07 de novembro de 2016.