CONSTRANGIMENTO RELIGIOSO AO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

As restrições de ordem religiosa ao pensamento científico são bem antigas e conhecidas. Giordano Bruno e Galileo Galilei sofreram as consequências dessas restrições. O primeiro morreu na fogueira, por causa de suas idéias sobre o universo infinito e o panteísmo; e o segundo teve de abjurar a suas descobertas sobre o movimento dos corpos celestes, inclusive da terra em torno do Sol.

Não é de hoje que religiosos, inseguros de suas crenças fundamentais, temem que a ciência leve ao fim da religião. Não foi isso o que aconteceu. A ampliação do conhecimento científico não levou ao fim da religião, mas, sim, das crenças, até mesmo das superstições que tomam o lugar daquela.

Recentemente, esse problema recorrente chegou às manchetes de jornais e aos noticiários de televisão de todo o país: a questão da constitucionalidade da Lei de Biossegurança. Vamos aos fatos.

A lei 11.105, de 24 de março de 2005, intitulada Lei de Biossegurança, foi aprovada por maioria absoluta nas duas casas do Congresso Nacional. Dentre seus objetivos principais estão o de “estabelecer normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvem organismos geneticamente modificados e seus derivados” e a criação do Conselho Nacional de Biossegurança. O artigo 5º. da lei permite, “para fins de pesquisa científica e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento”. Condições são exigidas para isso: que os embriões estejam inviáveis para fins de reprodução e estejam congelados há pelo menos três anos; que os genitores deem seu consentimento; as instituições de pesquisa ou serviços de saúde deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.

Inconformado com a decisão do Congresso Nacional, o Procurador-Geral da República Cláudio Fonteles pôs o cargo a serviço de suas crenças pessoais e moveu uma Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI contra a lei 11.105/2005. Acolhida a ação, o Supremo Tribunal Federal suspendeu os dispositivos contestados e promoveu audiências públicas com cientistas, médicos, religiosos, filósofos, antropólogos, juristas, assim como pessoas portadoras de necessidades especiais. Definiram-se duas correntes de idéias: os que defendiam a tese de que a vida começa no momento mesmo da concepção, portanto o embrião é vivo e merecedor da proteção dos genitores e do próprio Estado; e os que defendiam a tese de que não é possível dizer quando a vida começa, mas, com certeza os embriões congelados e inviáveis jamais se desenvolveriam a ponto de serem considerados seres humanos. Diante da inviabilidade deles terem vida, propriamente falando, que eles fossem empregados na pesquisa científica e na terapia.

Mas, os defensores da ADI foram acusados de visarem, na realidade, um alvo estratégico: se o STF reconhecesse que a vida começa no momento mesmo da concepção, não seria possível aceitar, legalmente nem moralmente, nenhuma forma de aborto, nem mesmo os que a legislação brasileira admite, nos casos de estupro e de perigo de vida para a mãe. Diante do crescimento do movimento pela descriminalização do aborto, condenar, por implicação, qualquer forma de interrupção voluntária da gravidez, seria uma vitória jurídica e política dos setores que se intitulam “defensores da vida”.

O voto do relator da ADI no STF, ministro Carlos Brito foi favorável à constitucionalidade da lei, mas outro ministro do tribunal, Carlos Alberto Direito, conhecido por suas ligações com o alto clero católico, pediu vistas, como se o assunto não tivesse sido suficientemente analisado.

Tratava-se, então, de algo mais do que a pesquisa científica e a terapia a partir de células-tronco embrionárias. Trata-se, isto sim, do controle religioso sobre a pesquisa científica, como se certas sociedades religiosas tivessem o monopólio da ética.

A retomada da votação no STF, nos dias 27 a 29 de maio de 2008, evidenciou a pequena maioria dos laicos: 6 ministros manifestaram-se pela constitucionalidade da Lei de Biossegurança, contra 5 que apresentaram graus diversos de objeções. Estes pretendiam estabelecer condições para a pesquisa científica, emendando a lei, como se o STF fizesse parte do Poder Legislativo. Apertada vitória, mesmo assim, vitória do Congresso Nacional e da maioria dos pesquisadores brasileiros, sintonizados com a vanguarda internacional.

Mas a difusão do conhecimento científico já consolidado é também um problema que a limitada laicidade do Estado brasileiro permite que exista no ensino público e no ensino privado. A presença do criacionismo é um exemplo dramático desse problema.

A crença na criação do ser humano e dos demais seres vivos, em suas formas atuais, é baseada na literatura religiosa, especialmente a bíblica. Mas, nos últimos anos, essa crença latente tem sido reforçada pela atuação de instituições religiosas nacionais e internacionais, que a disseminam sob a forma pseudo-científica do desenho inteligente, que tem como alvo o rebaixamento da teoria da evolução para “apenas uma hipótese”, de mesmo valor epistemológico daquela crença. A prevalência dessa posição levaria ao reenquadramento, nos currículos escolares, da Zoologia, da Botânica, da Ecologia e da Genética.

Essa concepção, originada nos EUA, tem, no Brasil, bases de operação na Sociedade Criacionista Brasileira, fundada em 1972, e na Associação Brasileira de Pesquisa da Criação, fundada em 1979. No campo do ensino superior, o criacionismo tem o suporte explícito e organizado da Igreja Adventista do Sétimo Dia, em especial de suas instituições de ensino superior, credenciadas pelo MEC. Nas universidades públicas, o criacionismo não encontra respaldo oficial, mas algumas promoções isoladas têm ocorrido, todas orientadas, direta ou indiretamente, por insituições religiosas.

Como base social para a difusão recente dessa doutrina, tem sido assinalada a tentativa de, com a evocação das imagens bíblicas, reconstituir-se, simbolicamente, uma ordem social perdida no convulsionado mundo atual. As consequências práticas dessas doutrinas se fazem sentir fora do campo propriamente educacional, pois elas diminuem a eficácia não só dos programas de saúde, no âmbito escolar, como, também, reforça os preconceitos sociais sobre tudo o que diga respeito ao sexo e à reprodução. Nas escolas públicas, o tratamento curricular das questões da saúde fica prejudicado, pois encontra uma barreira nos preconceitos religiosos.

Mais ainda, a própria reivindicação do seu ensino nas disciplinas de Ciências e Biologia é muitas vezes defendida sob o argumento de acesso à informação e à pluralidade de opiniões, representado pela expressão emblemática “ensino da controvérsia”. Daí resulta o ensino de teorias que não fazem parte do corpo de conhecimento científico, assim como em confusões epistemológicas quando não em falsidade ideológica. Tais fatos obviamente adquirem consequências danosas para o processo de ensino, conferindo status epistemológico científico a idéias que estão longe de possuí-lo, prejudicando desse modo a formação dos alunos e sua compreensão adequda a respeito da natureza da Ciência. Vale ainda ressaltar que o argumento do “ensino da controvérsia”, por si só carece de qualquer fundamentação, uma vez que não há controvérsia alguma instalada na comunidade científica sobre a existência ou não de processos de evolução biológica na natureza.

Mesmo que o criacionismo não se infiltre nas disciplinas Ciências ou Biologia, ele prevalece na disciplina ensino religioso, de modo que o currículo se transforma numa espécie de arena, com uma disciplina ensinando o contrário da outra, algo inaceitável na escola pública.

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