DECLARAÇÃO UNIVERSAL DA LAICIDADE NO SÉCULO XXI*
Preâmbulo
Considerando a crescente diversidade religiosa e moral no seio das
sociedades atuais e os desafios encontrados pelos Estados modernos para
favorecer a convivência harmoniosa; considerando também a necessidade de
respeitar a pluralidade das convicções religiosa, atéias, agnósticas,
filosóficas e a obrigação de favorecer, por diversos meios, a decisão
democrática pacífica; e, finalmente, considerando a crescente
sensibilidade dos indivíduos e dos povos com relação às liberdades e aos
direitos fundamentais e aos direitos fundamentais, incentivando os
Estados a buscarem o equilíbrio entre os princípios essenciais que
favorecem o respeito pela diversidade e a integração de todos os
cidadãos com a esfera pública, nós, universitários, acadêmicos e
cidadãos de diferentes países, propomos a reflexão de cada um e o debate
público, sobre a seguinte declaração:
Princípios fundamentais
Artigo 1º: Todos os seres humanos têm direito ao respeito à sua
liberdade de consciência e à sua prática individual e coletiva. Este
respeito implica a liberdade de se aderir ou não a uma religião ou a
convicções filosóficas (incluindo o ateísmo e o agnosticismo), o
reconhecimento da autonomia da consciência individual, da liberdade
pessoal dos seres humanos e da sua livre escolha em matéria de religião e
de convicção. Isso também implica o respeito pelo Estado, dentro dos
limites de uma ordem pública democrática e do respeito aos direitos
fundamentais, à autonomia das religiões e das convicções filosóficas.
Artigo 2º: Para que os Estados tenham condições de garantir um
tratamento igualitário aos seres humanos e às diferentes religiões e
crenças (dentro dos limites indicados), a ordem política deve ter a
liberdade para elaborar normas coletivas sem que alguma religião ou
crença domine o poder e as instituições públicas. Conseqüentemente, a
autonomia do Estado implica a dissociação entre a lei civil e as normas
religiosas ou filosóficas particulares. As religiões e os grupos de
convicção devem participar livremente dos debates da sociedade civil. Os
Estados não podem, de forma alguma, dominar esta sociedade e impor
doutrinas ou comportamentos a priori.
Artigo 3º: A igualdade não é somente formal; deve-se traduzir na
prática política por meio de uma constante vigilância para que não haja
qualquer discriminação contra seres humanos no exercício dos seus
direitos, particularmente dos seus direitos de cidadão, independente
deste pertencer ou não a uma religião ou a uma filosofia. Para que a
liberdade de pertencer (ou de não pertencer) a uma religião exista,
poderão ser necessárias “acomodações razoáveis” entre as tradições
nacionais surgidas de grupos majoritários e as de grupos minoritários.
A Laicidade como princípio fundamental do Estado de Direito
Artigo 4º: Definimos a laicidade como a harmonização, em diversas
conjunturas sócio-históricas e geopolíticas, dos três princípios já
indicados: respeito à liberdade de consciência e a sua prática
individual e coletiva; autonomia da política e da sociedade civil com
relação às normas religiosas e filosóficas particulares; nenhuma
discriminação direta ou indireta contra os seres humanos.
Artigo 5º: Um processo laicizador emerge quando o Estado não está mais
legitimado por uma religião ou por uma corrente de pensamento
especifica, e quando o conjunto de cidadãos puder deliberar
pacificamente, com igualdade de direitos e dignidade, para exercer sua
soberania no exercício do poder político. Respeitando os princípios
indicados, este processo se dá através de uma relação íntima com a
formação de todo o Estado moderno, que pretende garantir os direitos
fundamentais de cada cidadão. Então, os elementos da laicidade aparecem
necessariamente em toda a sociedade que deseja harmonizar relações
sociais marcadas por interesses e concepções morais ou religiosas
plurais.
Artigo 6º: A laicidade, assim concebida, constitui um elemento chave da vida democrática.
Impregna, inevitavelmente, o político e o jurídico, acompanhando assim
os avanços da democracia, o reconhecimento dos direitos fundamentais e a
aceitação social e política do pluralismo.
Artigo 7º: A laicidade não é patrimônio exclusivo de uma cultura, de
uma nação ou de um continente. Poderá existir em conjunturas onde este
termo não tem sido utilizado tradicionalmente. Os processos de
laicização ocorreram ou podem ocorrem em diversas culturas e
civilizações sem serem obrigatoriamente denominados como tal.
Debates sobre a laicidade
Artigo 8º: A organização pública do calendário, as cerimônias fúnebres
oficiais, a existência de “santuários cívicos” ligados a formas de
religião civil e, de maneira geral, o equilíbrio entre o que surgiu da
herança histórica e aquilo que se atribui ao pluralismo atual em matéria
de religião e de convicção de uma determinada sociedade, não podem ser
considerados solucionados de maneira definitiva, e lançar-se no terreno
do inimaginável. Ao contrário, isto constitui o centro de um debate
laico pacífico e democrático.
Artigo 9º: O respeito concreto à liberdade de consciência e a
não-discriminação, assim como a autonomia da política e da sociedade
frente a normas particulares, devem ser aplicados aos debates
necessários relativos às questões associadas ao corpo e à sexualidade,
com a enfermidade e a morte, com a emancipação das mulheres, a educação
dos filhos, os matrimônios mistos, a condição dos adeptos de minorias
religiosas ou não religiosas, dos “não-crentes” e daqueles que criticam a
religião.
Artigo 10º: O equilíbrio entre três princípios constitutivos da
laicidade também é um fio condutor para os debates democráticos sobre o
livre exercício de culto, sobre a liberdade de expressão, a manifestação
de convicções religiosas e filosóficas, o proselitismo e os limites
decorrentes do respeito pelo outro, bem como as interferências e as
distinções necessárias entre os diversos campos da vida social, as
obrigações e os acordos razoáveis na vida escolar ou profissional.
Artigo 11º: Os debates sobre estas diferentes questões colocam em jogo a
representação da identidade nacional, as regras de saúde pública, os
possíveis conflitos entre a lei civil, as representações morais
particulares e a liberdade de decisão individual, como um marco do
princípio da compatibilidade das liberdades. Em nenhum país e em nenhuma
sociedade existe uma laicidade absoluta; tampouco as diversas soluções
disponíveis em matéria de laicidade são equivalentes.
A Laicidade e os desafios do século XXI
Artigo 12º: A representação dos direitos fundamentais evoluiu muito
desde as primeiras proclamações de direitos (final do século XVIII). A
significação concreta da dignidade dos seres humanos e da igualdade de
direitos está em jogo nas soluções propostas. O limite estatal da
laicidade enfrenta hoje problemas provenientes de estatutos específicos e
de direito comum, de divergências entre a lei civil e determinadas
normas religiosas e de crença, de compatibilidade entre os direitos dos
pais e aquilo que as convenções internacionais consideram como direitos
da criança, bem como direito à “blasfêmia” ou à liberdade de expressão.
Artigo 13º: Nos diversos países democráticos, para numerosos cidadãos, o
processo histórico de laicização parece ter chegado a uma
especificidade nacional, cujo questionamento suscita receios. E, quanto
mais longo e conflituoso tiver sido o processo de laicização, em maiores
proporções se manifestará o medo de mudanças. Não obstante, na
sociedade ocorrem profundas mutações, e a laicidade não poderia ser
rígida e imóvel. Portanto, é necessário evitar tensões e fobias, para
poder encontrar novas respostas aos novos desafios.
Artigo 14º: Nos locais onde ocorrem, os processos de laicização
corresponderam historicamente a uma época em que as grandes tradições
religiosas dominavam os sistemas sociais. O sucesso de tais processos
criou certa individualização do religioso e daquilo que se refere às
crenças, o que se transforma em uma dimensão da liberdade de decisão
pessoal. Contrariamente, o que se teme em determinadas sociedades, a
laicidade não significa abolir a religião, mas a liberdade de decisão em
matéria de religião. Isso também implica, nos dias de hoje, onde
necessário, desligar o religioso daquilo que se encontra assentado na
sociedade e de todas as imposições políticas. Sem embargo, quem fala de
liberdade de decisão também se refere à livre possibilidade de uma
autenticidade religiosa ou de convicção.
Artigo 15º: Portanto, as religiões e convicções filosóficas se
constituem socialmente em locais de recursos culturais. A laicidade do
século XXI deve permitir articular diversidade cultural e unidade do
vínculo político e social, da mesma maneira que as laicidades históricas
tiveram que aprender a conciliar as diversidades religiosas e a unidade
deste vínculo. É a partir deste contexto global que se faz necessário
analisar o surgimento de novas formas de religiosidade, tanto de
combinações entre tradições religiosas, de misturas entre o religioso e
aquilo que não é religioso, de novas expressões espirituais, mas também
de formas diversas de radicalismos religiosos. Igualmente, é no contexto
da individualização que se deve compreender porque é difícil reduzir o
religioso ao exclusivo exercício do culto, e porque a laicidade como
marco geral da convivência harmônica é, mais do que nunca, desejável.
Artigo 16º: A crença de que o progresso científico e técnico pode
engendrar progresso moral e social encontra-se atualmente em declínio;
isto contribui para tornar o futuro mais incerto, dificultar a sua
projeção e tornar os debates políticos e sociais menos legíveis. Depois
das ilusões do progresso, corre-se o risco de privilegiar
unilateralmente os particularismos culturais. Esta situação nos estimula
a ser criativos com relação à laicidade, para inventar novas formas
para o vínculo político e social, capazes de assumir esta conjuntura
inédita e encontrar novas relações com a história que construímos em
conjunto.
Artigo 17º: Os diferentes processos de laicização correspondem aos
diferentes desenvolvimentos dos Estados. As laicidades, por outro lado,
tomaram diversas formas, dependendo do fato do Estado ser centralista
federal. A construção de grandes conjuntos supra-estatais e o relativo,
mas real, desprendimento do jurídico com relação ao estatal geram uma
nova situação. O Estado, sem embargo, encontra-se mais em uma fase de
mutação do que em verdadeiro declínio. Tende a atuar menos na esfera do
mercado, e perde, pelo menos de maneira parcial de Estado Benfeitor que
ocupou em muitos países em maior ou menor proporção. Por outro lado,
intervém em esferas até agora consideradas como privadas, isto é,
íntimas, e talvez responda mais do que no passado a demandas sobre
segurança, algumas das quais podem ameaçar as liberdades. Portanto,
necessitamos inventar novos vínculos entre a laicidade e a justiça
social, assim como entre a garantia e a ampliação das liberdades
individuais e coletivas.
Artigo 18º: Ao mesmo tempo em que existe uma vigilância para que a
laicidade não adote, neste contexto, aspectos da religião civil ou se
sacralize de alguma forma, a aprendizagem dos seus princípios inerentes
poderá contribuir para uma cultura de paz civil. Isso exige que a
laicidade não seja concebida como uma ideologia anticlerical ou como um
pensamento intangível. Além disso, em contextos onde a pluralidade de
concepções do mundo se apresenta como uma ameaça, esta deverá aparecer
como uma verdadeira riqueza. A resposta democrática aos principais
desafios do século XXI chegará através de uma concepção laica, dinâmica e
inventiva. Isso permitirá que a laicidade se mostre realmente como um
princípio fundamental de convivência.
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*Declaração apresentada por Jean Baubérot (França), Micheline Milot (Canadá) e Roberto Blancarte (México) no Senado Francês, em 9 de dezembro de 2005, por ocasião das comemorações do centenário da separação Estado-Igrejas na França.