A Reforma do Cristianismo, no século XVI, e o cisma que se seguiu, mergulhou a França em longas guerras religiosas, como outros países da Europa. Católicos e protestantes massacravam-se uns aos outros e disputavam os favores dos monarcas em busca de privilégios políticos, de monopólio ideológico ou de mero direito à existência. Nesse século houve nada menos do que oito guerras entre católicos e protestantes, na França, sendo ora uns ora outros vencedores. O último deles culminou com o Édito de Nantes, de 1598, no qual o rei Henrique IV assegurou a liberdade de culto no país. Nove décadas depois, o édito foi revogado por Luís XIV, porque os huguenotes (nome dado aos calvinistas na França) opuseram-se ao seu absolutismo. O resultado foi a emigração em massa de protestantes, que buscaram refúgio na Grã-Bretanha, na Alemanha, na Holanda e em outros países, inclusive em colônias europeias na América do Norte, onde existia maior liberdade religiosa.
O século XVIII foi denominado pelos seus contemporâneos de “século das luzes”, alusão ao movimento filosófico que nele se desenvolveu: o iluminismo. Ainda que não fossem homogêneos nas ideias a respeito do homem e da sociedade, os filósofos pretendiam que a razão iluminasse as trevas da superstição e da ignorância com as luzes da razão, de modo que as descobertas científicas referentes ao mundo natural pudessem se estender ao mundo humano. Para isso, seria preciso, em primeiro lugar, recusar o princípio de autoridade, tão caro à Igreja Católica e à monarquia absolutista.
Embora as primeiras manifestações do iluminismo ocorressem na Inglaterra e na Holanda, foi na França que esse movimento esteve mais voltado para a vida social e política. Sentindo-se entravada em sua expansão enquanto classe (pela persistência do feudalismo que tinha a cobertura da Igreja Católica), a burguesia encontrou nesse movimento filosófico uma oportuna expressão ideológica de seus interesses materiais e simbólicos.
Munidos desse pensamento inédito, os filósofos do século XVIII submeteram a vida social de seu tempo a uma crítica implacável. Denunciaram as superstições, o fanatismo e a intolerância decorrentes da religião e atacaram os privilégios da nobreza, bem como as restrições por ela impostas à manufatura e ao comércio. Para eles, tudo isso mostrava que as instituições existentes – políticas, culturais, religiosas e morais – eram irracionais, isto é, contrárias à natureza racional do homem, impedindo, portanto, a realização plena de suas potencialidades.
Mesmo não sendo revolucionários, em termos de conduta pessoal, os filósofos iluministas contribuíram para o processo revolucionário francês pela difusão da atitude crítica diante da tradição e do poder absoluto.
A revolução francesa de 1789 abriu caminho para a prevalência do iluminismo na política, que resultou na desapropriação de bens eclesiásticos, inclusive as vastas propriedades rurais, na supressão dos privilégios políticos do clero e até mesmo na limitação do culto católico, tudo isso com forte apoio popular. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamou a independência do Estado diante de qualquer religião, especialmente no artigo 10, que dizia: “Ninguém deve ser molestado por suas opiniões, mesmo religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.” Nesse curto texto, encontram-se os dois pilares dos processos de secularização da cultura e da laicidade do Estado: a liberdade de crença e a prevalência do Estado (ordem pública) sobre a religião.
O turbulento processo da Revolução levou a extremos como a Constituição Civil do Clero, ao estabelecimento de uma “religião civil”, bem como o retorno à antiga simbiose Estado-Igreja Católica, na intermitente restauração monárquica. A concordata firmada por Napoleão e pelo papa Pio VII, em 1801, reconheceu a religião católica como a da maioria dos franceses – uma fórmula eufemística de combinar privilégios católicos com liberdade de culto para os protestantes. Entre aqueles privilégios estava a substituição do calendário republicano pelo gregoriano e a garantia da manutenção financeira do clero. Esse conflituoso processo de aproximação e afastamento propiciou a formação de uma forte concepção laica, de base popular, no qual se engajaram intelectuais de grande projeção.
A II República, saída da Revolução de 1848, foi dominada pelo medo da burguesia diante dos movimentos dos trabalhadores, do que resultou uma maioria conservadora na Assembleia, que logo elegeu presidente Luiz Napoleão Bonaparte. Leis antidemocráticas foram aprovadas, inclusiva a proposta e aprovada pelo ministro da Instrução Pública, André Falloux, um monarquista católico e clericalista. O projeto, aprovado em março de 1850, submeteu o magistério das escolas primárias públicas às autoridades eclesiásticas, bem como favorecia as escolas secundárias católicas, a título de apoiar a liberdade de ensino. Um dos deputados que mais veementemente se opuseram a tal projeto foi Victor Hugo, já escritor famoso. Para ele, o efeito dessa lei não seria pôr o ensino público francês dependente da Igreja Católica, mas, sim, do “partido clerical”, que seria o parasita daquela. Ele não queria que acontecesse com a França o mesmo que esse partido fizera com a Itália e a Espanha. Depois de séculos controlados pela inquisição, esses países deixaram de ser fontes das artes e do saber humano, para se tornarem obscurantistas e prisioneiros da ignorância. Se os clericalistas pretendessem evitar o progresso, acabariam provocando a revolução. Nas suas palavras, cheias de significados belicosos: “para evitar Torquemada, nós apelaremos a Robespierre!” (apud GAUTHIER e NICOLET, 1987, p. 118)
A restauração monárquica que se seguiu à curta II República teve seu termo na ocupação de Paris pelo exército prussiano, em 1870, e na resistência movida pela Comuna, quando os trabalhadores, pela primeira vez na história, tomaram o poder com o projeto de reorganização do Estado e construção de uma nova Sociedade. A Igreja Católica foi separada do Estado e todas as suas propriedades foram estatizadas. As subvenções para fins religiosos foram suprimidas. A curta duração da Comuna, duramente reprimida pelos exércitos francês e prussiano, não permite saber como os ideais socialistas seriam concretizados, nem como a laicidade do Estado seria efetivada, além daquelas medidas ditadas pela conjuntura excepcional.
A III República que saiu das eleições de 1871 levou Jules Ferry à Assembleia Nacional, como deputado em vários mandatos. Protestante e maçom, ele foi ministro da Instrução Pública em 1879/1883. Em seu mandato ministerial foram estabelecidas as bases educacionais vigentes na França por mais de um século, dentre as quais a laicidade da escola pública. A primeira aproximação foi em 1880, por lei que determinava a criação de estabelecimentos de ensino secundário para moças (liceus e colégios). Eles não previam o ensino religioso no currículo, mas permitiam seu oferecimento facultativo por um padre. Para Ferry, era preciso que as mulheres deixassem de pertencer à Igreja Católica, para pertencerem à Ciência, condição para a democracia política na França. Esse dispositivo foi logo estendido, por decreto, ao ensino secundário masculino.
Os avanços na direção da laicidade na escola pública francesa foram feitos em meio a muitos conflitos, mesmo no âmbito republicano. Havia setores que defendiam a supressão de toda e qualquer referência a Deus ou a uma dimensão espiritual da vida, enquanto outros pretendiam a secularização dessas referências numa espécie de “religião civil”, e, outros ainda, preferiam a coexistência da neutralidade religiosa do Estado com algo próximo ao teísmo maçônico.
Em 28/3/1882 foi aprovado projeto de lei apresentado por Ferry à Assembleia, que instituía o ensino primário público laico, embora a Igreja Católica continuasse ligada ao Estado. A laicidade na escola primária consistiria em três pontos principais: supressão do ensino religioso, mesmo a título facultativo, substituído pela instrução moral e cívica; instituição de um dia de férias por semana, que não no domingo, de modo que os pais pudessem levar seus filhos para receberem educação religiosa, se assim quisessem, mas fora do espaço escolar; e revogação de todos os dispositivos da lei Falloux, de 1850. Como desdobramento dessa lei, normas ministeriais determinaram que os padres não poderiam mais fazer parte do pessoal docente, bem como os símbolos religiosos deveriam ser retirados dos edifícios escolares públicos, particularmente os crucifixos das salas de aulas. Uma circular ministerial recomendou que essa retirada fosse feita com precaução, no momento mais favorável, evitando perturbar as famílias ou o ambiente da escola. (BAFFI, in PINTASSILGO, 2013, p. 40)
Fora do âmbito escolar, medidas de caráter laico estiveram presentes em leis, como a que permitiu o divórcio, em 1884. No ano seguinte, foram suprimidas as faculdades de teologia mantidas pelo Estado, sendo que a da Sorbonne deu lugar à École Pratique des Hautes Études, em 1886, em cujo objetivo estava previsto o estudo científico dos fenômenos religiosos, causa de fortes críticas dos católicos, que denunciaram a orientação positivista da nova instituição. (BAUBÉROT, 2007, p. 58)
Todavia, a Igreja Católica permanecia ligada ao Estado, situação que sofreu forte abalo com a visita do Presidente da República francesa ao rei da Itália, em 1904. Ora, a unificação dos reinos e repúblicas da península italiana e a constituição do Estado foi feita com a incorporação dos Estados pontifícios, inclusive a tomada de Roma para capital. O papa proclamou-se prisioneiro no Vaticano, de onde não mais saiu até a concordata com Mussolini em 1929. A visita do presidente francês foi duramente criticada pelo papa porque ele aceitara, implicitamente, o que teria sido a espoliação material e simbólica sofrida pela Igreja Católica. O presidente da França, país considerado há séculos, a “filha dileta da Igreja”, visitava o usurpador justamente nos lugares usurpados… (OZOUF, 1982. p. 184) A crise política daí resultante levou ao rompimento de relações de Paris com o Vaticano, somente reatadas em 1921. Depois de intensos debates na Assembleia Nacional, foi aprovada a lei de 9/12/1905, pela qual a República asseguraria a liberdade de culto e o fim do regime de reconhecimento de instituições religiosas. Além disso, o Estado não daria subvenções financeiras nem pagaria salários aos clérigos, a não ser aos que exercessem algum tipo de capelania. Associações culturais, criadas para gerir instituições religiosas, deveriam prover os recursos de que tivessem necessidade, inclusive para a construção de templos. Os que fossem da propriedade do Estado seriam postos a sua disposição, gratuitamente, mas eles não poderiam ser usados para reuniões de caráter político. A lei previa que normas posteriores devessem incluir dispositivos prevendo como delitos o impedimento ou a interrupção de cultos religiosos. Os monumentos públicos não deveriam ostentar símbolos ou emblemas religiosos. Em suma, as instituições religiosas passavam do domínio do Direito Público para o do Direito Privado. (BAUBÉROT, 2007, p. 80-81)
A derrota da França diante da invasão alemã, em 1940, culminou num armistício que estabeleceu a ocupação de toda a faixa costeira do país, do lado do Atlântico, inclusive Paris, e organização de um regime controlado pelas tropas nazistas, com sede no balneário de Vichy, que manteve relações diplomáticas com países neutros ou alinhados com o Eixo. Presidido pelo marechal Petain, herói da I Guerra Mundial, o governo títere foi sustentado por um leque de partidos de direita, com orientação fascista predominante, no qual se incluíam os católicos, empenhados todos no combate a comunistas, socialistas, liberais e maçons. Uma pesada indenização teve de ser paga à Alemanha, de modo que o regime de Vichy foi repressor tanto no domínio econômico quanto no ideológico.
Seguindo o que os papas vinham pedindo desde meados do século XIX e os nazistas realizaram na Alemanha, uma lei da França/Vichy, de 1940, dissolveu a Maçonaria e outras “sociedades secretas”. As medidas discriminatórias contra os judeus, de outubro de 1940 e 1941, romperam de vez com o princípio da laicidade republicana, cuja aplicação culminou, em 1942, com a prisão em massa de milhares de pessoas dessa religião e entrega aos ocupantes para serem levados e executados na Alemanha.
A política de Vichy foi favorável aos católicos, pela mudança da legislação de modo a beneficiar as congregações religiosas e a introdução da disciplina Educação Moral e Cívica com orientação autoritária, sintonizada com os valores então preconizados pela Igreja. O crucifixo foi entronizado nas salas de aula das escolas públicas, mas o ensino religioso durou pouco tempo nelas, assim mesmo em caráter facultativo. A presença de elementos laicos, mesmo no bloco de sustentação do governo, acabou por transferi-lo para fora do horário escolar. No entanto, as escolas privadas religiosas católicas foram subsidiadas financeiramente, de acordo com os efetivos discentes.
A libertação, em 1944/1945, abriu caminho para a formação de uma comissão de transição, formada por representantes de organizações católicas e laicas, presididas por um socialista de confissão protestante, para pôr fim ao regime de privilegiamento educacional católico. A comissão aprovou relatório com os seguintes pontos: as escolas públicas garantiriam o respeito às convicções dos alunos e seus pais, os quais participariam dos conselhos escolares, independentemente de suas crenças; nas cidades pequenas, haveria apenas uma escola, sob administração pública, na qual o ensino religioso poderia ser oferecido no próprio prédio, mas fora dos horários de aula. Nas cidades médias e grandes, o ensino religioso seria suprimido das escolas públicas.
Embora o Estado francês esteja impedido, desde a lei de 1905, de subsidiar qualquer culto, mecanismos indiretos de apoio financeiro mantiveram-se, até hoje, tanto às escolas confessionais quanto às entidades assistenciais religiosas. São 8.500 os estabelecimentos de ensino católicos, “contratados” pelo governo, com 2 milhões de alunos, ou seja 20% da população escolar francesa (exceto no grau superior). Essas escolas ministram o programa oficial e adicionam o ensino religioso, com possibilidade de dispensa. Em menor número, há escolas evangélicas e judaicas nas mesmas condições, mas nenhuma islâmica, embora não haja dispositivo algum na legislação que o impeça. A explicação oficial diz que isto se deve ao mais baixo nível de renda da população muçulmana na França, comparativamente às de outros credos, o que a impediria as famílias dos alunos de cobrirem as diferenças entre o subsídio governamental às escolas “contratadas” e as mensalidades cobradas por elas.
Fora das aulas de ensino religioso, as escolas “contratadas” devem dar o mesmo tratamento na análise literária aos textos fundadores das grandes religiões (a Bíblia e o Corão, principalmente), de modo a não constranger os alunos que não optaram pelo conteúdo confessional. Esses textos são também utilizados no collège público (equivalente ao ensino fundamental brasileiro, da 6º ao 9º ano), embora predomine, aí, da parte de muitos professores, uma atitude de dessacralização, o que constrange os alunos em suas crenças.
A laicidade do Estado francês não é homogênea, pois há um verdadeiro estatuto enclave concordatário na região Alsácia-Mosela, onde as escolas públicas oferecerem ensino religioso, como faziam quando eram parte da Alemanha. Nessa região, onde há cultos reconhecidos pelo Estado, a manifestação pública da religião praticada por cada indivíduo é uma prática social antiga, que se expressa também no ensino religioso.
Os credos reconhecidos, para os quais há aulas de ensino religioso são o católico, o luterano, os “outros protestantes” e o judaico. No ensino primário e no secundário, os alunos têm uma hora de aula por semana de ensino religioso de seu credo. No secundário, os professores desse ensino são ministros dos cultos, mas, frequentemente, pessoal leigo, todos remunerados pelo Estado, mas indicados pelas autoridades religiosas. Os alunos podem ser dispensados dessas aulas, mas não há nada posto em seu lugar, de modo que eles deixam as escolas no horário do ensino religioso. Cerca de 1.500 padres, pessoal leigo, pastores e rabinos são pagos pelo governo da região e das municipalidades. O clero dos credos reconhecidos oficialmente tem regime previdenciário especial, têm direito a habitação gratuita e os bispos usam carro oficial com motorista. Nessa região da França existe ainda o delito de blasfêmia, punível com até três anos de prisão. As universidades de Metz e Estrasburgo são as únicas estatais que têm ensino de teologia. Em Estrasburgo foi inaugurado, em 2012, o primeiro cemitério municipal muçulmano da França. Em todos os demais municípios do país, os cemitérios públicos não têm separação entre os credos ou, então, têm quadras destinadas a certas religiões.
Esse quadro político está posto em causa, desde os anos 1980, principalmente, e se intensifica, pelo que é chamado na França de “presença do comunitarismo na escola pública”. Essa expressão designa os comportamentos, da parte dos pais de alunos e deles próprios, no sentido de se contraporem às práticas escolares em função de suas “comunidades religiosas”, particularmente dos muçulmanos, mas também dos judeus.
O panorama religioso da população francesa atual só pode ser quantificado por pesquisas amostrais ou por inferências, devido à proibição de que ela conste como quesito dos censos oficiais. As estimativas mais confiáveis dão conta de 65% de católicos na França, 6% de muçulmanos (de expressões bem diversas) e 2% de protestantes. Os ateus, agnósticos e sem religião somam 25% da população.
A França recebeu milhões de imigrantes de religião islâmica, do norte da África, em sucessivas ondas. Primeiro, como resultado de políticas nacionais para atrair mão de obra para a reconstrução do país, após o fim da II Guerra Mundial, e, depois, para acolher os habitantes das antigas colônias que optaram pela nacionalidade francesa. Nas últimas décadas, as múltiplas crises econômicas e políticas dos países africanos, têm expulso grandes contingentes populacionais que procuram melhores condições de vida na Europa, inclusive na França. Tanto os mais antigos desses imigrantes, quanto os mais recentes, formam um segmento discriminado, espacial e social e até mesmo racialmente: moram em bairros separados e sofrem todo o tipo de rejeição.
Como muitos dos muçulmanos respondem à discriminação, econômica e racial pelo reforço de práticas religiosas, reais ou apenas alusivas, que se expressam na frequência às mesquitas e/ou no uso de vestimentas tradicionais, principalmente as mulheres, mediante burca, o niqab e até mesmo o hijab, véu que cobre os cabelos.
O governo francês tem respondido com repressão a esse cenário. De um lado, dificulta a entrada no país de imãs provenientes do norte da África, a título de repressão a possíveis terroristas; de outro, dificulta as orações coletivas fora das mesquitas, que não têm espaço para acolher a todos os crentes; de outro, ainda, insiste nas práticas que signifiquem a integração na cultura francesa, vale dizer a homogenizição da sociedade. A laicidade do Estado é recorrentemente evocada em apoio a essas respostas oficiais.
A islamofobia que decorre desse quadro tem menos apoio nos fatos do que nos preconceitos. Os argelinos, o grupo nacional mais numeroso em todas aquelas ondas, são menos numerosos do que os italianos e empatam com os espanhóis, origem social que não suscita a mesma reação negativa dos franceses. A islamofobia começou como posição típica do xenofobismo da direita ideológica, que afirmava serem os costumes da população muçulmana incompatíveis com as tradições judaico-cristãs da França, como, de resto, de toda a Europa. À esquerda, a islamofobia evocava a laicidade para combater o que seria a sujeição da mulher pela separação em várias atividades coletivas, inclusive na educação, e a obrigação de usar trajes que implicam sua submissão ao machismo. Somando-se a esses dois vetores há outro, mais recente, posterior aos atentados em Nova York, em 11/9/2001, que supõe todos os árabes e/ou muçulmanos suspeitos de ameaças à segurança pública.
A escola pública continua a ser o palco mais importante da luta pró ou contra a laicidade do Estado. Os alunos islâmicos reivindicam o uso de roupas mal vistas ou proibidas, o fornecimento de merenda especialmente preparada segundo seus ritos, a separação de alunos e professores segundo sexo, o emprego de material religioso no ensino, etc.
Nas escolas públicas situadas em bairros com grande número de imigrantes de países de população muçulmana, as dificuldades apontadas são inúmeras e de difícil solução prática. O proselitismo religioso tem aumentado muito nas escolas públicas, não só mediante a presença de alunos crentes, mas, principalmente, pela pressão destes sobre os provenientes de países de maioria muçulmana, para que cumpram certos preceitos, com destaque para o jejum do Ramadã.
Diante de todos esses problemas, as atitudes variam muito. Alguns diretores praticam a negociação, outros a oposição pura e simples a essas práticas. Mas, na maioria dos diretores e professores, persiste um forte mal-estar diante do que entendem ser ou dever ser a escola republicana, igual para todos, sem adotar nem rejeitar a crença de ninguém. A única medida de caráter geral tomada pelo governo foi quanto ao porte de símbolos religiosos nas escolas públicas.
Depois de ampla discussão nacional, no parlamento, nos partidos políticos, na imprensa, nas organizações de todos os tipos, foi aprovada uma lei, em 15 de março de 2004, que interditou o porte de símbolos ou roupas que manifestem uma pertinência religiosa nas escolas públicas, desde que tenham “dimensão manifestamente excessiva”. A lei foi aprovada com expressiva maioria parlamentar, maior ainda na regulamentação pelo Conselho Superior de Educação. Aliás, uma pesquisa realizada com os professores, em 2004, revelou que 72% aprovavam a lei.
Cumpre esclarecer que ela não proíbe qualquer símbolo religioso, mas apenas os mais ostensivos. Nada contra uma pequena cruz ou estrela de David ao pescoço, nem contra um véu na cabeça. A interdição vai contra uma batina católica, um quipá ou um véu que cobre o pescoço e todo o cabelo da cabeça das mulheres, até a raiz, só deixando a face de fora. Com mais razão ainda, uma burca. Essa interdição se aplica até o liceu (mais ou menos equivalente ao ensino médio brasileiro), não incidindo sobre o nível superior, no qual é grande a presença de estudantes de origem estrangeira, tradição francesa desde a Idade Média, o que se pretende manter. Isso não quer dizer que o “comunitarismo” não exista na universidade pública.
Não é descabido pensar que a “questão do véu islâmico”, como fato mais político e mediático, pode ser uma construção artificial para, de um lado, as autoridades escolares submeterem moralmente estudantes imigrantes ou filhos destes, e, de outro, os alunos rejeitarem uma escola estranha e inamistosa, ainda que sua prática religiosa seja ocasional ou meramente ritual.
Foi nesse contexto de intenso conflito que foi criado o Observatoire de la Laïcité, elaborado no âmbito da direita política. A ideia inicial foi do presidente da República Jacques Chirac, em 2003, que promulgou decreto de criação, mas ele ficou no papel. Nicolas Sarkozy, que o sucedeu, tampouco tomou iniciativa de ativá-lo. O decreto permaneceu letra morta por dez anos até que o presidente François Hollande, situado na esquerda do campo político, resolveu dar-lhe consequência. Em abril de 2013, ele nomeou os membros do Observatório, que é o único no âmbito estatal em todo o mundo. O Observatório francês foi instituído junto ao primeiro-ministro, e funciona como um órgão colegiado. Ele é composto de 22 pessoas, das quais sete são membros do governo (secretários-gerais de ministérios), dois deputados, dois senadores e 11 personalidades, todas nomeadas pelo presidente. Suas finalidades são, basicamente, promover estudos e propor medidas de ação governamental que concorram para a laicidade do Estado francês. A primeira ação pública de projeção do Observatório foi a aprovação, por unanimidade, da Carta da Laicidade na Escola, de cuja redação seus membros participaram. O texto integral da Carta encontra-se no fim deste texto.
BIBLIOGRAFIA
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GIUMBELLI, E. O fim da religião – dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França, São Paulo: Attar Editorial, 2002.
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OZOUF, M. L´École, l´Église et la République, 1871-1914, Paris: Éditions Cana, 1982.
WILLAIME, Jean-Paul e MATHIEU, Séverine (orgs). Des maîtres et des dieux – écoles et religions em Europe, Paris: Belin, 2005.
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CARTA DA LAICIDADE NA ESCOLA
(grifos no original)
1. A França é uma República indivisível, laica, democrática e social. Ela assegura a igualdade perante a lei, em todo o seu território, de todos os cidadãos. Ela respeita todas as crenças.
2. A República laica organiza a separação entre religiões e Estado. O Estado é neutro com relação a convicções religiosas ou espirituais. Não existe religião de Estado.
3. A laicidade garante liberdade de consciência a todos. Cada um é livre para crer ou não crer. Ela permite a livre expressão de suas convicções, dentro dos limites das crenças dos outros e da ordem pública.
4 – A laicidade permite o exercício da cidadania, conciliando a liberdade de cada um com a igualdade e a fraternidade de todos, em atendimento ao interesse geral.
5 – A República assegura dentro dos estabelecimentos escolares o respeito a cada um destes princípios.
6 – A laicidade nas escolas oferece aos alunos as condições para forjar sua personalidade, exercer o livre arbítrio e fazer a aprendizagem da cidadania. Ela os protege de todo o proselitismo e de toda pressão que os impeçam de fazer suas próprias escolhas.
7 – A laicidade assegura aos alunos o acesso a uma cultura comum e compartilhada.
8 – A laicidade permite o exercício da liberdade de expressão dos alunos no limite do bom funcionamento da Escola tanto quanto do respeito aos valores republicanos e do pluralismo de convicções.
9 – A laicidade implica a rejeição de todas as violências e de todas as discriminações, garante a igualdade entre meninos e meninas e se apoia sobre uma cultura do respeito e da compreensão do outro.
10 – Cabe a todos os professores e funcionários transmitir aos alunos o sentido e o valor da laicidade, assim como outros princípios fundamentais da República. Eles velam por sua aplicação no âmbito escolar. Cabe-lhes levar esta carta ao conhecimento dos pais dos alunos.
11 – Os professores e funcionários têm o dever de estrita neutralidade: eles não devem manifestar suas convicções políticas ou religiosas no exercício de suas funções.
12 – O ensino é laico. A fim de garantir aos alunos a abertura a mais objetiva possível à diversidade de visões de mundo, assim como à extensão e à diversidade dos saberes, nenhum assunto está excluído a priori do questionamento cientifico e pedagógico. Nenhum aluno pode invocar uma convicção religiosa ou política para contestar a um professor o direito de tratar uma questão do programa.
13 – Ninguém pode tirar partido de sua filiação religiosa para recusar-se a cumprir as regras aplicáveis na Escola da República.
14 – Nos estabelecimentos escolares públicos, as regras de convívio dos diferentes espaços, especificados no regimento interno, respeitam a laicidade. É proibido aos alunos usar símbolos ou roupas que manifestem ostensivamente uma filiação religiosa.
15 – Por suas reflexões e atividades, os alunos contribuem para tornar viva a laicidade em seu estabelecimento.