DINIZ, Débora, LIONÇO, Tatiana e CARRIÃO, Vanessa, Laicidade e ensino religioso no Brasil, Brasília: Letras Livres/ Editora UnB/Unesco Brasil, 2010.
A primeira coisa a fazer diante deste livro é saudar seu lançamento. Afinal, ele deve ser o terceiro ou o quarto livro publicado no Brasil com o termo laico ou laicidade no título. Uma raridade que só se explica pela dificuldade política e ideológica de tratar desse tema, que, há mais de dois séculos, está na ordem do dia em todo o mundo. Bem vindo, portanto.
O texto resultou da colaboração entre a Comissão Cidadania e Reprodução – CCR com o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero – ANIS, além da Universidade de Brasília e da UNESCO. As três autoras são pesquisadoras da ANIS; Débora Diniz é professora da UnB e Tatiana Lionço, do UniCeub, também na capital federal.
Nas 112 páginas deste livro, são encontrados dois tipos de matérias. Um capítulo apresenta os resultados da pesquisa “Diversidade cultural nos livros de ensino religioso” e os outros três compõem matéria complexa, nos quais as autoras (sempre em duplas) discutem a questão dessa disciplina nas escolas públicas no Brasil.
As autoras sabem que percorreram terreno contestado: a determinação constitucional de oferta do ensino religioso nas escolas públicas não resultou de um consenso democrático, mas, sim, da hegemonia exercida por certas instituições religiosas, particularmente a Igreja Católica.
Elas reconhecem existirem “argumentos fortes” que contestam a legitimidade da oferta do ensino religioso no Brasil, país laico. O argumento mais importante é o de que esse conteúdo curricular “compromete o reconhecimento de que a religiosidade haveria de ser um dado incontornável da boa vida, colocando risco, portanto, a liberdade de crença, ao apresentar, explicitamente, a religião como fundamental à formação da cidadania. Atrelada a essa idéia está a crítica sobre a abertura das instituições públicas de ensino para as disputas morais na sociedade brasileira. Com essa abertura, a escola pode servir como campo estratégico de manutenção de moralidades hegemônicas, como as tradições cristãs ou de inviabilização de crenças não majoritárias, como as tradições afro-brasileiras, orientais ou indígenas. (p. 98-99)
Mas, ao invés de aprofundarem a vertente laica, as autoras assumiram outra: primeiro, reconheceram como um dado irremovível (pelo menos não contestaram) a determinação constitucional da inclusão do ensino religioso nas escolas públicas de Ensino Fundamental; segundo, denunciaram o proselitismo de fato (vedado pela LDB) exercido pelo ensino religioso; terceiro, defenderam a garantia de direitos republicanos, a partir da condição laica, a exemplo da liberdade de consciência, da igualdade de direitos, das liberdades individuais e da não discriminação dos diferentes.
A vertente assumida levou as autoras a defenderem uma posição perigosa: a revisão do artigo 33 da Lei de Diretrizes a Bases da Educação Nacional, de modo que o Estado estabeleça diretrizes curriculares para a disciplina ensino religioso, como fez para as disciplinas obrigatórias do Ensino Fundamental. Elementos dessas diretrizes são adiantados, como o caráter não confessional dessa disciplina, ao contrário do que prevê a legislação de certos sistemas estaduais, como o do Rio de Janeiro, o caso mais conspícuo. Duas conseqüências são esperadas, a avaliação pelo Ministério da Educação do ensino efetivamente ministrado nessa disciplina, hoje desconhecido; e a elaboração de editais próprios para a seleção dos materiais didáticos que serão empregados nas escolas públicas.
A pesquisa empírica é a parte mais forte da obra. Foram analisados 25 livros para a disciplina ensino religioso, publicados por 11 editoras, explicitamente religiosas ou não, entre março e julho de 2009.
Os resultados principais mostraram que os livros de ensino religioso contêm vários e importantes estereótipos, em especial os seguintes: a) preponderância de representação das religiões cristãs, sobretudo do catolicismo; b) sub-representação das religiões afrobrasileiras e indígenas, com ênfase em narrativas que não reconhecem igual status de religiosidade entre essas religiões e as tradições cristãs, conferindo àquelas uma identidade primitiva ou de crenças mágicas; c) ausência de representação de grupos ou de pessoas sem religião; d) estigmatização da pessoa com deficiência, em clara discordância das recomendações da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo governo brasileiro em 2008. (p. 92 e 101).
O conteúdo desses livros didáticos deveria ser objeto de séria reflexão pelas pessoas que, generosamente, acham que o conteúdo do ensino religioso na escola pública deveria ser o ensino de valores. Elas pensam que esses valores são evidentemente bons, mas a pesquisa mostrou que os livros estão cheios de estereótipos e recusam o reconhecimento da diversidade com base no princípio da igualdade. Não bastasse isso, os livros enfraquecem o estatuto epistemológico do conhecimento científico, ao equiparar o conhecimento científico às incertezas das proposições religiosas.
Ao final da leitura, a impressão que fica da leitura da obra é de um trabalho de pesquisa que pode servir de incentivo para que seja ampliado o conhecimento da prática curricular do ensino religioso nas escolas públicas. Teses e dissertações de Ciências Sociais, de Educação e de Psicologia poderiam dar contribuições valiosas para ampliar e sistematizar os conhecimentos sobre essa disciplina – conteúdos, procedimentos e materiais didáticos, docência, etc. Fica, também, a preocupação com a possibilidade de que a regulamentação defendida pelas autoras acabe por reforçar, na prática, o que elas criticam, isto é, as disputas religiosas no interior das escolas públicas, então potencializadas pelos recursos públicos, tanto os financeiros quanto os humanos. Pior de tudo, com a cobertura da legislação, agora complexificada pela concordata Brasil- Vaticano.
Tudo somado, vai aqui a dica de leitura de um livro que contém crítica, traz proposta e
faz pensar.
[Dica de Luiz Antônio Cunha]