LAICIDADE E REPÚBLICA: O VÍNCULO NECESSÁRIO

Resenha elaborada por Luiz Antônio Cunha do livro de Guy Coq, Laïcité et Republique, le lien nécessaire, Paris, Le Félin, 1995 [edição consultada: 2003].

Guy Coq é um agregé de Filosofia, ex-professor associado do IUFM (Instituto Universitário de Formação de Mestres) de Versalhes, na França, e membro do comitê de redação da revista Esprit. Essa prestigiosa revista foi criada em 1932, por Emmanuel Mounier, inspirador do personalismo, uma das correntes progressistas católicas francesas, que ganhou o mundo. A opção de diálogo com os comunistas, ao invés de sua satanização, como era a posição oficial da Igreja Católica pré-conciliar, fez do pensamento de Mounier um apoio para os católicos que, no Brasil como em outros países da América Latina, buscavam o engajamento político nos anos 50 e 60. No plano mundial, Esprit tornou-se um espaço de diálogo de diversas correntes da esquerda anti- totalitária, e contribuiu para lançar importantes pensadores franceses, como Paul Ricoemr e Claude Lefort, assim como de outros países, como Hannah Arendt e Cornelius Castoriadis.

Guy Coq é autor de várias obras, entre as quais Éloge de la culture scolaire, em 2003, na qual examina as causas do mal estar dos professores da educação básica, assim como as consequências das políticas educacionais dos governos franceses nas últimas décadas, tanto os de esquerda quanto os de direita. No campo propriamente religioso, ele publicou, em 2002, Pour une Église ferment de civilization et d´humanisme. Coordenou a publicação das atas de um colóquio promovido pela UNESCO, em Paris, em 2000, sobre Emmanuel Mounier, “Actualité d´un grand témoin”. A questão desenvolvida no livro em foco nesta resenha foi antecipada em Que m´est-il donc arrivé ?, publicado em 1993.

É, então, nessa múltipla condição de católico, militante de esquerda, filósofo e professor, que Coq se lançou na difícil tarefa de refletir sobre a laicidade. Tarefa especialmente difícil para um católico francês, já que as feridas da Revolução de 1789 parecem não ter cicatrizado em todo o corpo eclesiástico de seu país.

Vamos à obra.

Nesse livro de 330 páginas, o autor aborda diferentes temas, sempre ligados à conjuntura francesa, entre os quais as relações entre a educação pública e a educação privada, a questão do véu islâmico na escola pública, a educação cívica, a moral laica.

Ele não se apresenta como um descobridor de caminhos novos, mas como alguém que retoma trajetos anunciados antes, na mesma revista Esprit. Nesse sentido, ele cita o artigo de Joseph Vialatoux e André Latreille, “Christianisme et laïcité”, de outubro de 1949, no qual eles defenderam que a adesão dos cristãos à laicidade não deve ser resultado de uma resignação, mas, sim, basear-se na consciência de que a liberdade evangélica precisa dela. A originalidade de Coq está na argumentação a partir de duas lógicas, a republicana e a religiosa, cada uma correspondente a um campo.

A história da França esteve marcada pelos conflitos entre o campo republicano e o campo clerical, que chegou a dividir o país: de um lado, estava a França vermelha (cor dos lenços e barretes dos revolucionários de 1789), de outro, a França negra (cor das batinas dos padres). Cada campo tem sua própria lógica, que, no entanto, não são simétricas. A lógica da laicidade, própria do campo republicano, não é simplesmente do contra, pois ela propõe um quadro de coexistência pluralista, propiciadora da liberdade de crença e do respeito a todas as crenças. A lógica do campo clerical, por sua vez, se apresenta como disposição para a dominação total.

O autor reconhece que a história da laicidade, na França, tem componentes conflituosos e até mesmo anti-religiosos, que estão ligados a conjunturas específicas, nas quais as posições anti-republicanas da Igreja Católica contribuíram para intensificar. Mas, para ele, a laicidade pode e deve se libertar desse peso histórico. Para isso, dois inimigos devem ser combatidos: o catolicismo anti-republicano e o laicismo intolerante e anti- clerical, duas formas simétricas de rejeição do pluralismo, ou seja, da liberdade do outro.

Um inimigo da laicidade está dentro da própria Igreja Católica, que nega a capacidade de se educar com dignidade em uma “escola sem Deus”. Para Coq, a Igreja melhor faria se abrisse mão de manter uma rede própria de ensino, e incorporasse seus recursos materiais e humanos nas redes públicas de ensino. Ou seja, o engajamento católico no ensino público. O outro inimigo é o laicismo intolerante, aquele que se recusa a defender valores, como, na tradição francesa. A posição de Jules Ferry (Ministro da

Instrução Pública no período 1879/1883, patrono da escola laica na Franca, aliás, cristão de confissão evangélica), era que a escola pública deveria instruir, mas não educar. Nosso autor entra em um terreno de grande importância, mas ainda mal explorado, qual seja, o dos valores no currículo da escola pública. Ele rejeita como uma pretensão ingênua a cultura escolar como universal. Com exemplos múltiplos retirados do currículo do liceu francês, ele se pergunta que universalidade é essa que ignora as culturas “estrangeiras”, “populares”, “primitivas”, “regionais”, etc.

Sem ignorar as crenças minoritárias, o autor não busca nelas a legitimidade da laicidade. Ao contrário, vai buscá-la na religião majoritária em seu país, o cristianismo. A tese de Coq é que a laicidade não resulta apenas da lógica republicana, mas deriva, antes de tudo, de um desenvolvimento inerente ao cristianismo, isto é, de uma concepção da fé, na qual a autenticidade cristã demanda a liberdade de crença, portanto a separação entre a ordem espiritual e a ordem temporal.

Segue abaixo um extrato longo do 1º capítulo da 3ª parte do livro em foco, intitulado “Princípio de uma moral laica”, que supomos ter interesse central para o contexto brasileiro, no qual se imagina que uma educação centrada em valores só pode ser uma educação religiosa, particularmente, o conteúdo da disciplina Ensino Religioso nas escolas públicas. Vejamos o que diz Guy Coq sobre a moral laica.

“Se se admite que a educação é uma urgência essencial para a sobrevivência de uma sociedade laica, sociedade frágil, sem garantia religiosa, importa, então, examinar quais são os fundamentos possíveis da educação em uma sociedade laica. Responder a essa questão supõe um exame aprofundado dos desafios que resultam da ideia mesma de laicidade, ligada à ideia democrática.

Para começar, uma moral laica é somente pensável ? Passado o tempo em que Jules Ferry a identificava à boa moral de nossos pais, a sociedade laica se choca com a dispersão individualista dos valores e das diversas morais existentes. Nenhuma sociedade pode passar sem pontos de referência ética. E a educação laica não se mantém se não se apoiar no projeto de um possível fundamento ético da vida em comum. Mas, então, bem entendido, devemos nos lembrar da lição de Ferry: nossa laicidade é, certamente, neutralidade religiosa, mas ela não é neutra quanto à ética e à política. Ela está a serviço da ideia republicana.

Em seguida, uma questão mais difícil se impõe: laicidade significa, então, neutralidade religiosa, quer dizer, ausência de filosofia oficial, rejeição da tomada de posição sobre as questões últimas com que se depara toda existência: donde viemos, quem somos, onde iremos, existe Deus ou um vazio irremediável do ser ? Esta exigência da laicidade está traduzida, frequentemente, por um silêncio sobre a questão do sentido. Ora, não há cultura humana que, de uma certa maneira, não esteja definitivamente em busca de sentido. Toda cultura visa inventar uma humanidade arrancada do absurdo, enraizada em um mundo de sentido. E, levando em conta a ligação necessária entre cultura e educação, toda educação verdadeira culmina em um sentido do ato de viver. Mas, então, não chegaremos a uma contradição entre laicidade e educação ? Eu me esforçarei em mostrar que a educação laica apela para uma cultura que dá a cada um os meios de se orientar livremente na questão do sentido. Ela não dá a resposta à questão “por que viver?”, ela educa para a arte de procurar uma resposta pessoal.

Entretanto, o sentido possível de uma educação laica poderia ser posta em causa se constatássemos que o educador introduz, por sua pessoa mesma, por suas escolhas inevitáveis, pelo modelo que ele constitui, por sua influência mesma, um obstáculo decisivo à ideia de uma educação laica. Se o educador é neutro, é um homem insípido, sem profundidade, uma humanidade mutilada e, então, ele não será um bom educador. Se o mestre é um humano verdadeiramente vivo, então a ideia de uma educação laica ainda tem sentido ?

Esta perspectiva de uma educação para a democracia não seria pensada sem abordar a ideia de uma moral laica. Felizmente, este tema volta a ser atual. Por vezes, é a urgência que provoca a atenção sobre a moral necessária, quando comportamentos extremos, principalmente sexuais, se produzem na escola. É uma constatação antiga. Existe um déficit de educação neste país [a França] e a educação escolar está muito aquém do que deveria ser. Eu proponho não entrarmos no falso debate sobre a possibilidade de uma moral laica. Em 1993, em um livro anterior, tive a ocasião de mostrar que não seria necessária uma moral laica completa, acabada, mas que seria melhor pensar uma iniciação à prática do julgamento moral, onde ele é necessário. No fundo, a urgência educativa é formar humanos aptos a discernir as implicações [enjeux] éticas em todas as circunstâncias, em todas as situações; propor à consciência os meios para se orientar no mundo dos valores. Certamente, não se pode imaginar uma sociedade coesionada por

um verdadeiro vínculo social sem uma certa comunidade de valores. E se há uma pluralidade de morais, situaremos a moral laica como a parte comum a todas as morais, seja sua inspiração religiosa ou filosófica. Até onde podemos pensar, esse espaço de encontro entre as morais é possível. Nossa tarefa seria, então, de resgatá-la, na prática mesma da educação escolar.” (p. 155-157)

Coq faz uma advertência para os defensores da laicidade. Ele associa a fragilidade do Estado laico à fragilidade do Estado democrático. A democracia abre a possibilidade de organização e difusão de ideias contrárias a ela mesma, do que temos exemplos na ascensão do fascismo europeu e suas versões recentes. A laicidade, do mesmo modo, pode abrir espaço para a difusão de crenças tendentes à destruição da laicidade, como é o caso do intregrismo islâmico. Para evitar essa ameaça, o autor não vê outra saída que não seja na própria educação, na qual a laicidade seja o conteúdo do currículo escolar, a orientação dos professores, a lógica dos sistemas de ensino e o fundamento da ação e das palavras dos dirigentes políticos.

Os dois últimos parágrafos da conclusão desse extenso e denso livro contêm um desafio que o autor lança à Igreja Católica, cuja filiação ele faz questão de afirmar. Coq desejaria que sua Igreja desse o consentimento completo à sociedade laica, livrando-se da armadilha em que se deixou prender, ao manter um sistema educacional privado confessional, cada vez mais vazio de significado, mas instrumento eficaz para desestabilizar o sistema público de ensino. Se a Igreja quiser inscrever-se na sociedade moderna, ela deve mudar sua própria cultura. E finaliza assim o livro:

“Como crente, cuja carreira escolar como aluno, educador e professor de filosofia, passou-se na escola laica, da infância até hoje, aposto que minha Igreja tem nela mesma o impulso espiritual para se livrar das nostalgias de um passado idealizado, a fim de se pôr, sem reservas, ao serviço da sociedade laica, para contribuir, com todos os outros, a inventar, na civilização presente, uma humanidade melhor.” (p. 330)

Para os não católicos e os não crentes, uma frase de Guy Coq pode ser assumida como síntese de seu pensamento, para além de sua crença particular: a laicidade não é uma opção, é ela que permite a liberdade de opção.

Agenda de atividades

Copyright 2024 - STI - Todos os direitos reservados

Skip to content