Evaldo Luis Pauly*
1. A LIBERDADE
Este posicionamento teológico e pedagógico em favor do laicismo, baseia-se na definição de liberdade formulada pelo 18º artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
A educação oferecida nos diferentes sistemas de ensino deve considerar, na sua radicalidade democrática, a liberdade prescrita nesse artigo. A LDB e quase todos os projetos pedagógicos das escolas declaram que a educação visa à formação para a cidadania, então, por que esse artigo fundamental para as liberdades democráticas é praticamente ignorado? A liberdade é o fundamento moral razoável na formação para a cidadania. A escola não garante o Estado de Direito, mas contribui para que a cidadania e o Estado constituam, mantenham e aperfeiçoem seus sistemas de ensino necessariamente públicos, mas não exclusivamente estatais. Por que nossa educação não assume a radicalidade das liberdades democráticas? Respondo essas questões defendendo a tese de que ainda não estabelecemos uma cultura pedagógica laica, nossa cultura hegemônica permanece ainda mágica e mistificante.
Os sistemas de ensino ainda não produziram uma fundamentação universal convincente da moral laica inerente aos processos educativos da formação humana em valores ou virtudes que se ensinam e se aprendem na escola. A moral laica precisa ser construída em diálogo permanente entre todas as instâncias públicas de formação para a cidadania: escolas, partidos, igrejas, serviços públicos, empresas, sindicatos, universidades… Por uma razão objetiva e, ao mesmo tempo dramática: os sistemas de ensino são o principal meio de socialização da infância e da juventude brasileiras, portanto, há de se construir uma escolarização de longo prazo como medida pedagógica para o incremento do processo civilizador no Brasil, sob a vigência dos Direitos Humanos e a conseqüente redução da criminalidade1.
Com base no direito do cidadão à liberdade, os educadores podem pactuar uma justificação pedagógica para a gestão democrática dos sistemas municipais, estaduais e federal de ensino no interior dos quais estão as instituições de ensino categorizadas, de forma isolada ou combinada, como instituições comunitárias, confessionais e/ou filantrópicas de ensino (Art. 20, inciso II, III e IV). A LDB as distingue das instituições “de direito privado que não apresentem as características” (Art. 20, inciso I) dessas três categorias. As escolas confessionais “atendem a orientação confessional e ideologia específicas” (Art. 20, inciso III) porque garantem ao cidadão o seu direito à liberdade de confissão religiosa. A moral laica impede que o Estado oferte uma educação confessional e, ao mesmo tempo, obriga-o a garantir ao cidadão a livre escolha pela educação em escolas públicas não-estatais de caráter confessional ou ideológico. A radicalidade das liberdades democráticas, direito pleno da cidadania, implica no direito de qualquer cidadão, se desejar, ter acesso à educação confessional, sem nenhum impedimento econômico. Ao mesmo tempo, pelo caráter público da educação, as escolas confessionais não podem auferir lucros ou prejuízos econômicos em função do serviço público que prestam a esta parcela da cidadania.
2. O LAICISMO
Parece-me possível justificar teologicamente o laicismo a partir de Lutero, considerando que o luteranismo é uma tendência teológica do cristianismo moderno. Essa fundamentação pode iniciar com uma clássica fórmula de Lutero que, já no início do século XVI, defendeu a separação absoluta entre Igreja e Estado por razões teológicas:
Para a Reforma, o regime eclesial rege a interioridade pessoal e os cristãos nele vivem de modo justo, sem imposição da lei, na liberdade do amor. O regime secular controla o mundo externo pela lei escrita e pelo monopólio da repressão: “o direito e a espada secular”. Lutero procura “distinguir cuidadosa-mente esses dois regimes e deixá-los vigorar: um que torna justo, o outro que garante a paz exterior e combate as obras más”.2
Não se trata de um dualismo entre os regimes político e eclesiástico. Trata-se de uma relação dialética de mútua negação entre esses dois regimes. A síntese possível parece assumir que a dimensão religiosa limita-se à privacidade da vida íntima; exigindo-se do Estado que assuma o controle legítimo do espaço público: a paz e a repressão da maldade. A vida privada e a vida pública se misturam de tal modo que exigem acuidade para distingui-las adequadamente. Essa dialética produziu uma ruptura epistemológica na ideologia hegemônica do feudalismo. A justificação para a existência do estado não é a justiça divina, mas a capacidade política objetiva do Estado preservar a paz, prevenir e reprimir a violência.
A Reforma pode ser interpretada como uma secularização religiosa. As pessoas cristãs que vivem no amor são religiosas por causa da fé, não por causa da religião, mais ou menos no sentido que lhe deu o pastor luterano Bonhoeffer, executado por enforcamento num campo de concentração nazista: “Em lugar da religião está agora a Igreja – isto não é bíblico – mas o mundo, por assim dizer, fica entregue a si mesmo, o que é um grave erro”.3 O erro está no dualismo pelo qual a igreja abandona o mundo a si mesmo, imaginando estar num lugar acima dele. Para Bonhoeffer, a igreja deve mergulhar no mundo, assumindo as vicissitudes da vida pública. A partir da definição da igreja como casa de oração, Lutero a compreende como reunião de pessoas que dialogam profundamente entre si e com Deus. “Ali, em conjunto e em concórdia, devemos tomar as necessidades nossas e de todas as pessoas, apresentá-las a Deus e suplicar graça”. Ele confessa que
Deus não é hostil aos pecadores, e sim unicamente aos descrentes, isto é, aqueles que não reconhecem seu pecado, nem o lamentam nem procuram ajuda para isto junto a Deus, mas, em sua audácia, querem primeiro se purificar a si mesmos e não querem necessitar de sua graça, não o deixando ser um Deus que dá a todo o mundo e nada toma em troca.4
A teologia que confessa a disponibilidade incondicional de Deus ao mundo permite que os benefícios do clero se transfiram para o poder público. Essa secularização luterana produz uma certa santificação da autoridade secular porque “o poder secular é batizado como nós, tem a mesma fé e Evangelho, temos que deixá-lo ser sacerdote e bispo e considerar seu ofício como ofício que pertence à comunidade cristã e lhe é útil”5. Razão pela qual, Lutero defende a seguinte tese política: “Estabeleça-se que nenhuma questão secular seja levada a Roma, mas que todas elas sejam deixadas ao poder secular”.6 Ou seja, que o mundo governe-se a si mesmos e que os cristãos nele vivam sua fé pessoal, diferenciando-se apenas porque não desejam a autojustificação, mas a recebem – como todos – do próprio Deus.
Lutero propõe essa santificação sem deixar de combater a moral política, ou seja, a autojustificação do político. No livro “Das boas obras” afirma que não “haveria mal pior para os políticos do que os conselhos dos bajuladores”, porque o poder secular “também apresenta uma série de abusos: em primeiro lugar, quando dá ouvido aos bajuladores, o que constitui uma praga comum e particularmente prejudicial deste poder; ninguém pode proteger-se e cuidar-se dela o suficiente” 7. Essa santificação relativa do mundo político é identificada pela ciência política porque, desde há muito, a teologia e a ciência política influenciam-se mutuamente. 8
Lutero era frade da Ordem dos Eremitas Agostinianos de Observância Estrita. Em abril de 1518, poucos meses depois de divulgar as famosas 95 Teses sobre as Indulgências, apresentou-se ao capítulo de seus confrades em Heidelberg. Redigiu um conjunto de 28 teses teológicas e 12 filosóficas. Elas foram aceitas pelo Capítulo. Na última tese de Heidelberg afirma:
O amor humano evita os pecadores e os maus. Cristo diz: “Não vim chamar os justos, mas pecadores”. (Mt 9.13) E este é o amor da cruz, nascido da cruz, que não se dirige para onde encontra o bem de que possa usufruir, mas para onde possa proporcionar o bem ao mau e ao pobre9
Essa tese antecipa a teologia da justificação somente pela cruz em contraposição à teologia justificação por boas obras. Lutero define as boas obras “no sentido de que as suas obras (do justo ou justificado) não fazem a sua justiça; antes é a sua justiça que faz as obras”10. Ou seja, a relação entre o conhecimento do que sejam boas obras não determina sua realização. Para tanto é necessário, “poder distinguir com absoluta certeza entre o poder de Deus e o nosso, entre sua obra e a nossa obra, se é que queremos viver piedosamente”11. Dois anos depois do Debate de Heidelberg, Lutero foi condenado.12 Os Príncipes alemães, por razões de sua política econômica, assumem a chefia das igrejas da Reforma e, imediatamente, implantam legalmente o mercantilismo nos territórios alemães, exterminando os direitos feudais, provocando a Guerra dos Camponeses esmagada em 1525. A disputa entre católicos e protestantes recrudesce, sendo encerrada com a Paz de Augsburgo, em 1555, estabelecendo a fórmula “cuius rex, eius religio”, pela qual a religião do rei, seria a religião do reino. Acredito que este acordo político precário, pois ainda permanecia limitado ao paradigma da cristandade, virá a ser aprimorado com o avanço histórico das lutas democráticas até o surgimento da república laica. No século 17, a disputa religiosa na Europa recrudesceu com a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) exigindo acordos mais sólidos entre Estado e as religiões, processo que irá desaguar, nos séculos seguintes, na concepção do Estado laico. Filio-me à tese de que o laicismo do Estado de Direito preserva a liberdade religiosa de cada pessoa, garantindo-lhe a liberdade individual para livremente exercer ou não sua educação religiosa, sem constrangimentos de qualquer espécie.
3. O LAICISMO E A EDUCAÇÃO BRASILEIRA, HOJE.
3.1 A LDB
A LDB não se refere ao princípio republicano da educação laica. Limita-se a estabelecer a diferença entre instituições de ensino. O Art. 3º, inciso V, afirma que um dos princípios da educação é a “coexistência de instituições públicas e privadas de ensino”. Não parece adequado que a natureza privada ou pública de uma instituição de ensino seja um princípio educacional. O art. 7º vincula a liberdade do ensino “à iniciativa privada” e não à liberdade de consciência do cidadão que está assegurada pelo Estado Democrático de Direito signatário da Declaração dos Dir-tos-ei Humanos. Esse fato produz a relativa contradição com outros artigos da LDB que prevêem a unicidade dos sistemas de ensino:
Art. 16º. O sistema federal de ensino compreende:
I – as instituições de ensino mantidas pela União;
II – as instituições de educação superior criadas e mantidas pela iniciativa privada;
III – os órgãos federais de educação.
Do mesmo modo os artigos 17 e 18 defendem a unicidade nos sistemas de ensino estaduais e municipais. Se este é o caso, então por que o Título VII da LDB, “Dos Recursos financeiros”, legisla apenas sobre “recursos públicos destinados à educação” (Art. 68º)? Como poderá a União estabelecer o “padrão mínimo de oportunidades educacionais para o ensino fundamental, baseado no cálculo do custo mínimo por aluno, capaz de assegurar ensino de qualidade” (art. 74 e 75) sem incluir os orçamentos das escolas privadas? O art. 77 permite o repasse de “recursos públicos” somente às “escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas” que tenham “finalidade não-lucrativa e não distribuam resultados, dividendos, bonificações, participações ou parcela de seu patrimônio sob nenhuma forma ou pretexto” (Inciso I) entre outros quesitos. Como compreender um sistema de ensino a partir apenas da simples diferenciação entre três instituições educacionais: privadas lucrativas, privadas não-lucrativas e públicas?
3.2 O PDE
O Plano de Desenvolvimento da Educação-PDE lançado em 2007, se propõe a alterar a Educação Básica do país até 2022, bicentenário da independência nacional. O PDE sintetiza a estratégia política que a segunda gestão Lula pretende imprimir à educação pública. A opinião de Dermeval Saviani baseia-se na comparação entre o PNE e o PDE, concluindo que
Com a ascensão do PT ao poder federal, sua tendência majoritária realizou um movimento de aproximação com o empresariado, ocorrendo certo distanciamento de suas bases originárias. Talvez isso explique, de certo modo, por que o MEC, ao formular o PDE, o tenha feito em interlocução com a referida parcela da sociedade e não com os movimentos de educadores.13
Minha avaliação do PDE concentra-se na análise do discurso programático da Presidência da República por ocasião do seu lançamento em 24 de abril de 2007. O Presidente14 convoca a nação para uma “mudança de atitude dos governos, da sociedade civil e, muito especialmente, da família em relação ao ensino público” para transformar a “emoção cívica” que a educação desperta “em realidade”. Assim pretende recompor o que chamou de “projeto de educação nacional”. Para ele o PDE aperfeiçoará “gestão, financiamento, conteúdo, método, participação federativa e participação cidadã”. Para o presidente Lula, o compromisso de seu governo com o PDE tornou-se pessoal:
Eu o anuncio como o Plano mais abrangente já concebido neste País para melhorar a qualidade do sis-tema público e para promover a abertura de oportunidades iguais em educação. Eu vejo nele o início do novo século da educação no Brasil. Um século capaz de assegurar a primazia do talento sobre a origem social e a prevalência do mérito sobre a riqueza familiar. O século de uma elite da competência e do saber, e não apenas de uma elite do berço ou do sobrenome.
Se for assim, o PDE pretende uma educação moldada pelo clássico princípio liberal de imposição da meritocracia contra privilégios da aristocracia. Para isso o PDE, estabelecerá “sis-temas de monitoramento e aferição de resultados”. Esse “fortalecimento da educação” implicaria, segundo esta lógica, numa “mudança profunda na qualidade e na filosofia do ensino e, para isso, é indispensável debater o ensino, a relação do estado com o ensino e a relação da família com a educação”. Para o presidente, “a reconstrução do ensino básico passa, necessariamente, pela solução dos problemas que inibem o rendimento, a freqüência e a permanência do aluno na escola”. O PDE resolveria tais problemas porque “na base deles está uma sólida parceria com as famílias e as comunidades”. O presidente insiste em reforçar o apelo ao relacionamento entre as famílias e a educação, enfatizando que é
preciso ter coragem de afirmar que a maioria das famílias brasileiras tem uma relação contraditória e paradoxal com a educação. Todos os pais querem, de coração, que os filhos tenham uma boa educação e obtenham sucesso na vida, mas pouquíssimos estabelecem uma relação de intimidade com a escola dos seus filhos. Este comportamento tem que mudar, pois do contrário não conseguiremos implantar um projeto nacional de educação integral e transformadora.
Passa, então, a indicar atitudes que julga necessárias para que as famílias assumam o dever de educar, seja através da “participação dos pais” nos Conselhos Escolares, na orientação das “crianças em casa”, acompanhando o “resultado de seus filhos”, ajudando e cobrando das escolas “o aprendizado de suas crianças”. Apela às famílias para que apóiem o “professor, transformando cada escola num bem sagrado da comunidade”.
Essa insistência discursiva revela duas sobreposições lógicas que são recorrentes nos debates educacionais, especialmente, na difícil, necessária e justa delimitação entre os espaços público e privado. A primeira sobreposição lógica refere-se aos papéis da família e do Estado na educação. A segunda se refere à separação republicana entre Estado e Cidadania na definição, gestão e controle social das políticas públicas. Pela primeira sobreposição, o presidente insiste num equívoco criado pela LDB que equipara o dever da família ao dever do Estado na educação. Para o liberalismo, o dever da educação é exclusivamente estatal como, aliás, determina o art. 208 da Constituição Federal que explicita o dever do Estado com a educação de certo modo em oposição ao art. 205 que equipara este dever público do Estado ao dever privado da família. Essa sobreposição de deveres da família com os do Estado provoca ingerências indevidas do Estado na liberdade dos indivíduos. No Brasil, os cidadãos que desejam uma educação confessional, não possuem liberdade de consciência porque estão limitados pelas regras do mercado. A “livre iniciativa” é legítima, no entanto, há incompatibilidades com o princípio da universalização do direito à educação.
O direito das pessoas, por sua livre e exclusiva decisão individual, constituírem família, não as habilita para o dever de educar, apenas lhes concede o direito de educarem seus eventuais filhos da forma como a sua liberdade de consciência determinar. As famílias podem amar, cuidar, acarinhar, oferecer formação moral e proteger suas crianças, podem também participar dos órgãos gestores dos sistemas de ensino. Assim como também devem zelar pela matrícula e acompanhar o desempenho escolar dos filhos, mas, pelos princípios republicanos da justiça liberal, não são responsáveis pela educação escolar. Essa responsabilidade é dos sistemas de ensino e de seus profissionais da educação. A família realiza a “socialização primária” da criança, mas, por causa da complexidade da “socialização secundária”, a Constituição Federal “obriga a que todas as crianças em idade escolar estejam matriculadas em escolas autorizadas”15. As escolas integram um dos sistemas públicos de ensino; a família, ao contrário, tem caráter privado, e a República deve respeitar essa privacidade.
4. CONCLUSÃO
A família está obrigada, pela Constituição Federal e pela LDB, a educar seus filhos em escolas oficiais dos sistemas de ensino. Ora, os sistemas de ensino devem preservar o direito à liberdade de crença, autorizando em sua rede a presença de estabelecimentos confessionais mantidos pela iniciativa privada, posto que ao Estado está vedado o exercício de qualquer orientação confessional. O Estado democrático de direito é necessariamente laico, não professa ou renega qualquer crença que se submeta ao Estado de Direito.16 Essa obrigação do Estado de Direito e o simultâneo direito do cidadão não entram em contradição, se e somente se, a família exercer o direito de recusar-se a receber a educação laica da escola pública estatal, optando por uma educação confessional pública não-estatal. Nessa perspectiva, a educação vincula-se à liberdade do cidadão e não à iniciativa privada. Para defender a liberdade do cidadão, os sistemas de ensino devem acolher com legitimidade democrática, escolas de diferentes tradições religiosas que desejarem oferecer uma educação confessional de caráter público e não-estatal.
Os sistemas de ensino fundamentados na liberdade das famílias, especialmente das pobres, oferece educação pública laica em estabelecimentos estatais e educação pública confessional em estabelecimentos não-estatais. Desse modo, preserva-se dever das famílias com a educação e, simultaneamente, seu direito à liberdade de crença, um Direito Humano fundamental.
É preciso reconhecer claramente duas condicionantes da liberdade de crença religiosa: a) o direito à liberdade de crença é da pessoa e não da instituição escolar confessional; b) a liberdade das escolas confessionais é duplamente determinada pela livre escolha da família e pela inserção no seu respectivo sistema público de ensino. Assim, o laicismo do Estado preserva a liberdade de crença, pressuposto fundamental da concepção republicana dos sistemas públicos – não necessariamente estatais – de ensino.
O laicismo do Estado democrático de direito é justo e realiza a justiça quando oferece garantias plenas para que a cidadania exerça seu direito à liberdade de consciência e de crença ao cumprir o dever de educar-se e de educar suas crianças e adolescentes, sem subordinar sua consciência às restrições econômicas do livre mercado. É justo que a iniciativa privada vincule-se ao lucro e aos interesse privados pois é da sua natureza econômica. Por tal razão, embora seja legítimo pelo artigo 7º da LDB, não é moralmente justo que um estabelecimento educacional vincule-se ao lucro, objetivo da iniciativa privada. A natureza da liberdade da educação é a consciência de cada uma e de todas as pessoas, não apenas daquelas que podem pagar pela educação confessional que gostariam de receber. Assim, a discussão sobre o laicismo da educação, no contexto das escolas confessionais e filantrópicas que não podem distribuir lucros, remete para o problema político do financiamento dos sistemas públicos de ensino que incluem todas as escolas do país, sejam estatais ou mantidas por instituições confessionais, filantrópicas, cooperativas ou empresas privadas. O problema moral é a LDB aceitar que instituições educacionais obtenham e distribuam lucros através da oferta de serviços ou produtos educacionais pelas leis de mercado. Esse debate político requer outras definições acerca do financiamento da educação que a cidadania republicana e democrática necessita e merece.
* Teólogo da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil/IECLB e doutor em Educação pela UFGRS. Foi pastor da Comunidade Evangélica de Porto Alegre de 1985 a 1996 e professor na Escola Superior de Teologia de São Leopoldo/RS de 2000 a 2005. Atualmente é professor do Mestrado em Educação do Centro Universitário La Sallle – UNILASALLE/Canoas/RS. evaldo@unilasalle.edu.br
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1REZENDE F.; TAFNER, P. (org.). Brasil: o estado de uma nação. Rio de Janeiro: IPEA, 2006. p. 127: “A educação parece ter um impacto crítico, mas aparece somente no longo prazo. Sabe-se que a criminalidade é função inversa do nível individual de escolaridade. Isso se deve à maior empregabilidade daqueles mais escolarizados, bem como à introjeção mais profunda de valores de cidadania. Portanto, se educação é ineficaz no combate à violência e à criminalidade no curto prazo, aprimorá-la é uma política essencial de qualquer solução duradoura para essas questões, exigindo, porém, prazo mais longo de implementação. É importante frisar também que ela tem de ser parte de um pacote integrado de ações”.
2PAULY, E. L. O dilema epistemológico do ensino religioso. Revista Brasileira de Educação, set./dez. 2004, nº 27, p.172-182, p. 172. Nesta citação faço referência a LUTERO, M. Da autoridade secular: até que ponto se lhe deve obediência. In: Obras selecionadas. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia, (1996) [1523], v. 6, p. 79-114.
3 BONHOEFFER, D. Resistência e submissão, 2. ed., Rio de Janeiro; São Leopoldo: Paz e Terra; Sinodal, p. 134. Trata-se da emblemática carta escrita da prisão em 05.05.1944.
4 LUTERO, M. Das boas obras. In: Obras Selecionadas, São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia, 1989, v. 2. p. 133.
5 Id. À nobreza cristã. In: Obras Selecionadas, São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia, v. 2, p. 283.
6 Id., ibid., p. 302:
7 Id. Das boas obras. In: Obras Selecionadas, São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia, v. 2, p. 155.
8 SCHMIT, C. O conceito do político. Petrópolis: Vozes, 1992. O original é de 1932. Esse clássico das ciências políticas afirma que todos “os conceitos destacados da doutrina moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados. Isto não vale apenas por causa de seu desenvolvimento histórico, mas também na sua estrutura sistemática”.
9 LUTERO, M. O Debate de Heidelberg. In: Obras Selecionadas, São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia, 1987, v. 1. Tese 28.
10 Id., ibid. Tese 25.
11 LUTERO, M. La Voluntad Determinada. Buenos Aires: Paidós, 1976, p. 56.
12 A divergência entre a teologia da justificação e a teologia das boas obras está superada. Em 1999, a Igreja Católica assinou uma declaração conjunta com a Federação Luterana Mundial sobre a Justificação pela fé.
13 SAVIANI, D. O Plano de Desenvolvimento da Educação: análise do projeto do MEC. Educação & Sociedade. vol. 28, n.º 100, 2007, p. 1231-1255. p. 1243
14 SILVA, L. I. L. da. Discurso do presidente da República na cerimônia de assinatura dos atos normativos do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), Palácio do Planalto, 24 de abril de 2007. Disponível em http://www.info.planalto.gov.br/exec/inf_detalhehora.cfm?cod=25129
15 CURY, C. R. J. Educação escolar e educação no lar: espaços de uma polêmica. Educação & Sociedade, Campinas, vol. 27, n. 96 – Especial, p. 667-688, out., 2006, p. 671
16 Trata-se de conseqüência lógica do terceiro considerando anunciado no Preâmbulo da Declaração: “Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão.”