Apesar da separação constitucional entre o Estado brasileiro e os cultos religiosos, a presença de símbolos destes nos espaços e no calendário públicos é vista por muitos como “natural”. A começar pela própria Constituição. Em 1824, após dissolver a Assembléia Legislativa, Pedro I outorgou uma Constituição “em nome da Santíssima Trindade”. Mais comedidos, mas igualmente anti-laicos, os representantes do povo brasileiro, que em 1988 promulgaram a atual Constituição, declararam-se “sob a proteção de Deus”. E isso num país onde há cidadãos que não creem em Deus, que creem em várias divindades e até professam religiões que não possuem a figura de Deus.
Mais do que um arroubo auto-confiante dos constituintes de 1987/88, a presença de imagens religiosas é regra não escrita nos tribunais de todo o país, especialmente do crucifixo (símbolo de uma religião específica), que figura na parede acima do lugar do juiz ou do presidente do tribunal. Essa posição proeminente se repete nas Câmaras de Vereadores e nas Assembléias Legislativas, assim como em simples repartições públicas.
Apesar de causar estranheza diante do que é “natural” ou “sempre foi assim”, começam a surgir iniciativas de cidadãos que, individualmente ou em grupo, demandam ao Ministério Público, que sejam retiradas tais imagens religiosas. Argumentam que se o Estado brasileiro é para todos, as imagens religiosas não têm a mesma amplitude – valem apenas para seus crentes. Mas, no Brasil, os símbolos cristãos permanecem nos tribunais e nas repartições públicas. Isso é “natural” ou é um resquício do tempo em que o Estado brasileiro tinha religião oficial?
É claro que não ocorre a ninguém a retirada da imagem do Cristo Redentor do alto do Corcovado, na cidade do Rio de Janeiro. Embora a estátua tenha sido lá construída como expressão da religião dominante, justamente para evidenciar aos crentes e aos não crentes essa posição, a imagem do Cristo Redentor foi redefinida pelo povo como um monumento público, uma das maravilhas do mundo moderno. Em julho de 2007, a estátua do Cristo Redentor foi eleita por votação aberta, na internet, uma das “sete novas maravilhas do mundo”, ao lado da Muralha da China e outras. Ela é hoje um símbolo urbano característico do Rio de Janeiro, reconhecido em todo o mundo, como a torre Eiffel, de Paris; a estátua da Liberdade, de Nova Iorque; o portão de Brandenburgo, de Berlim; e a torre de Belém, de Portugal.
Além dos espaços públicos tangíveis, como as paredes dos tribunais, a ocupação religiosa cresce nos espaços intangíveis, mas nem por isso menos poderosos, como as emissoras de rádio e TV. Concessões do Poder Público, essas emissoras passaram a ser ocupadas por sociedades religiosas, que competem umas com as outras no interior mesmo das residências de todos ou quase todos.
A marcação pública do tempo, o calendário oficial brasileiro, está saturado de signos religiosos. Também aqui não se pode desconhecer que importantes datas tiveram significados religiosos, como o Carnaval, por exemplo. Mesmo o Natal, é cada vez mais algo secularizado e comercializado. Como o dia de domingo, inicialmente dia de louvor a Deus, pelos cristãos, tornou-se dia de descanso remunerado, garantido pela legislação aos crentes dos mais diversos credos (inclusive aos que louvam seu Deus na sexta-feira ou no sábado) e aos não crentes. Mas, a ocupação religiosa do calendário público continua. Em 2007, quando o papa Bento XVI proclamou a santidade de frei Galvão, algo que deveria dizer respeito apenas aos católicos, um novo particularismo quase foi imposto a todos, religiosos de outras religiões e não religiosos. Houve uma verdadeira corrida de deputados e senadores para ver quem conseguia fazer aprovar seu próprio projeto de lei instituindo mais um feriado religioso no país – o dia de São Galvão! Felizmente, prevaleceu o senso laico (ou foi a reação dos parlamentares evangélicos a esse particularismo?) e nenhum desses projetos foi convertido em lei. Todavia, mesmo sem feriado, o santo nacional ganhou seu dia no calendário.
Se os feriados religiosos constituem um problema que vem principalmente do campo religioso dominante, o sabatismo vem de religiões com menos adeptos. É o caso dos adventistas, que reclamam o direito de serem dispensados de atos públicos (como provas escolares ou de concursos) entre as 18 horas de sexta-feira e 18 horas de sábado. Demandas nesse sentido são apresentadas a diretores e secretários municipais e estaduais, que decidem segundo critérios erráticos.
O Conselho Nacional de Educação pronunciou-se, em 1999, a respeito de consulta de uma Secretaria Municipal de Educação sobre a legalidade de se abonarem as faltas de alunos adventistas que faltavam às aulas, sistematicamente, nas noites de sextas-feiras. O pedido foi objeto de parecer do conselheiro Carlos Roberto Jamil Cury, que, sem usar o termo, apontou o caráter laico do Estado e a marcação do tempo público. Cury mostrou que os calendários e os horários escolares fazem parte do calendário civil e concluiu: “considerando-se a relatividade do tempo e a convencionalidade das horas sob a forma de construção sócio-histórica de marcadores do tempo, comuns a todos e facilitadores da vida social, considerando-se a clareza dos textos legais, não há amparo legal ou normativo para o abono de faltas a estudantes que se ausentem regularmente dos horários de aulas devido às convicções religiosas.” O parecer de Cury (no. 15/99) foi aprovado pela Câmara de Educação Básica do CNE e deu a norma para todos os sistemas de ensino do país.
Em suma: neste caso, o Estado brasileiro (do qual o CNE é órgão constituinte) recusou a ocupação religiosa do tempo público, na forma do calendário escolar. O mesmo fez o Congresso ao não instituir um feriado nacional para se festejar São Galvão.