POR QUE DEFENDER UM ESTADO LAICO?

Yury Puello Orozco *

As discussões em torno dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos têm revelado a necessidade de se aprofundar a reflexão sobre a laicidade do Estado, especialmente pelo papel que as religiões desempenham quando se tratam de assuntos relacionados com a sexualidade, dimensão esta relacionada com as liberdades individuais e a autonomia das pessoas, valores próprios de Sociedades e de Estados modernos.

Este assunto põe em evidência, especialmente, as intervenções dos representantes de algumas instituições religiosas, principalmente a católica, contra a elaboração de políticas públicas ou projetos de lei que favoreçam esses direitos.

Cada vez que, com base em princípios religiosos de ordem moral, se discrimina uma pessoa por causa de sua orientação sexual ou se exerce controle sobre as práticas sexuais das mulheres, não se está respeitando os direitos de cidadania. Esta é a razão pela qual se justifica a defesa de um Estado laico, já que nas religiões residem as expectativas e as esperanças de se seguir impondo um controle patriarcal rígido sobre as mulheres, especialmente sobre os valores que têm propiciado uma vida digna para as mulheres: o princípio da igualdade, a autonomia e o direito de poder decidir sobre sua própria sexualidade e sua fertilidade.

Para as religiões monoteístas e patriarcais, o desafio se apresenta como o de enfrentar o distanciamento, cada vez maior, de seus fiéis em relação às normas propostas. Este distanciamento entre a norma e a prática dos fiéis é um indicador concreto de autonomia de uma sociedade que caminha para a secularização. A este respeito, o sociólogo Pierucci diz que “quando o prazer sexual passa a ser gozado por corpos seculares, autonomizados do dever de procriar, estamos diante de um processo de secularização” (Pierucci, 1997, p. 117). As mudanças de práticas dos fiéis constituem séria preocupação para os líderes religiosos, que mantêm seu poder controlando os corpos e os prazeres.

No entanto, a independência e autonomia dos fiéis apresenta algumas ambigüidades, já que os conflitos relacionados com a sexualidade e a reprodução são vividos no espaço cotidiano, impregnado de elementos cristãos e é nesse espaço da vida cotidiana onde se concretiza a forma de pensar e atuar das famílias, vizinhos, enfermeira, médico, advogado, etc. Em muitas ocasiões, os programas de saúde se vêm afetados, precisamente, pela ambigüidade ideológica que vivem alguns funcionários públicos de hospitais, por exemplo, que se consideram com o direito de julgar, em nome de sua moral religiosa, qualquer pessoa que busca serviços para a realização de um aborto; ou que é portadora de qualquer tipo de enfermidade sexualmente transmissível. Nesta relação, mediada por ideologias religiosas, em muitas ocasiões se estabelece a perda do direito individual e do direito de cidadania de pessoas que solicitam serviços vinculados à sexualidade ou aos direitos reprodutivos.

Uma pesquisa realizada por CDD Brasil mostra a ambigüidade que vínhamos assinalando. Segundo a pesquisa, 97% dos católicos entrevistados apóiam o uso dos preservativos e sua distribuição pelo governo, 86% está de acordo com o planejamento familiar através do uso de métodos anticoncepcionais. Em relação à pílula do dia seguinte, 71% se mostram favoráveis ao seu uso no caso de uma relação desprotegida, e 90% no caso de violação.

Apesar da forte tendência de distanciamento entre as práticas da sociedade e as normas religiosas católicas – como a pesquisa revela – também podemos afirmar que existe uma persistência dos padrões culturais cristãos, que marcam a sociedade, orientam a conduta das pessoas, particularmente das mulheres, especialmente em assuntos relacionados com a sexualidade e a reprodução humana. Esta ambigüidade, que as mulheres vivem, faz com que alguns grupos religiosos pensam que têm legitimidade para influir nas políticas públicas e para orientar as legislações nacionais na direção de suas normas e valores.

Como vimos analisando, em nossa sociedade, os temas relacionados com a sexualidade e a reprodução estão trazendo para o cenário público, diariamente, os conflitos que se estabelecem entre a concepção de direitos, incorporada nas políticas públicas e as concepções adotadas pelas instituições religiosas, que consideram a reprodução como um dom divino e a sexualidade como um meio para alcançar esse fim divino da reprodução.

Em todo o processo de conquista da cidadania, por parte das mulheres, podemos afirmar que o movimento feminista e o movimento GLBTT são os que mais têm reivindicado a necessidade de um Estado laico, livre de interferências e de imposições das religiões, já que são os corpos o lugar onde se concretizaram os discursos, as ideologias e os dogmas. Por isso, encontramos eco nas afirmações da filósofa Agnes Heller: “Somente quem tem necessidades radicais pode querer e fazer as transformações da vida. Essas necessidades ganham sentido na falta de sentido da vida cotidiana. Só pode desejar o impossível aquele para quem a vida cotidiana se tornou insuportável, justamente porque essa vida já não pode ser manipulada.” (Heller, 2000)

Até este momento, a lógica que impera na maioria das legislações latinoamericanas sobre a sexualidade e a reprodução é a lógica tradicional da proibição, do controle e da interdição. Daí, a negativa à legalização do aborto e a imposição de obstáculos às reivindicações das mulheres e da comunidade homossexual. Citamos como exemplo o caso das reivindicações das organizações GLBTT: somente agora, os Estados estão discutindo e abrindo possibilidades para reconhecer alguns direitos. Conforme aponta Ávila (2005) se algumas leis não eram sancionadas pelo Estado, era porque não as reconhecia como legais ou legítimas e, nesse caso, eram consideradas incorretas. Neste sentido, o Estado, ao não assumir os direitos dos GLBTT, como legítimos, assumia posições semelhantes às das religiões, que qualificam as relações homossexuais como “anormais” e não naturais.

Assim, o desafio que se apresenta ao Estado laico é quando as instituições políticas que o compõem consideram as religiões como elemento de legitimação e de integração social. O que demonstra que a ameaça não provém unicamente das religiões, mas do próprio Estado, que busca legitimidade nas religiões.

Neste sentido, o Estado laico é um princípio fundamental, que deve ser defendido, porque é o que permite que as interdições, as normas, os dogmas, as imposições, as repressões e as violações, realidades insuportáveis na vida cotidiana, sejam transformadas.

Devemos ter em conta que alguns assuntos relacionados com a sexualidade e a reprodução humana não se configuram como direitos. Sua incorporação é recente, especialmente porque eram considerados aspectos da vida social alheios às relações democráticas e cidadãs. Os sujeitos sociais – mulheres, negros/as e homossexuais – também foram despojados historicamente de poder para propor e definir seus próprios direitos.

De acordo com o que vimos analisando, podemos constatar que as reivindicações pelos direitos sexuais e reprodutivos não se limitam à defesa de direitos de certos setores sociais, mas que é uma forma de fortalecer a cidadania, o campo democrático e a defesa do Estado laico.

Pois bem, a implementação destes direitos encontra obstáculos nas forças conservadoras e fundamentalistas, que não aceitam o princípio da laicidade do Estado, pelo contrário, o violam. O poder que todavia existe nas tendências conservadoras representa um grande desafio para o aprofundamento e a legitimidade do Estado laico, pois, como afirma Linhares (2005), referindo-se a Hannah Arendt, a cidadania supõe não apenas que os indivíduos tenham direitos declarados formalmente em lei, mas que eles mesmos, por meio da ação, de sua atuação, de sua articulação no espaço público, se organizem para defender efetivamente estes direitos.

Por outro lado, a busca de uma cultura laica será efetiva se formos mais além do Estado, se avançarmos nas mudanças dos padrões culturais e religiosos. Para isso, devemos ter em conta que a igreja católica, em nossos países, teve uma forte influência na formação de nossas sociedades, organizadas de forma hierárquica, autoritária e intolerante com relação a todo o diferente e diverso. Portanto, a consolidação de um verdadeiro Estado laico é um desafio que se nos coloca para o aprofundamento dos direitos cerceados e o direito a novos direitos.

A dimensão laica é a base para estabelecer e exercer o direito à diversidade com equidade e justiça, já que os diálogos ou conflitos que emanam das diversidades requerem uma base neutra que só um âmbito laico possibilita.

A democracia, referencial importante das sociedades modernas, possibilita e cria as condições para que as religiões possam atuar em seu campo próprio, dentro da sociedade, em um clima de respeito e tolerância. Os princípios laicos se convertem em cimentos sobre os quais se constrói a democracia. O Estado, segundo estes princípios, deve atuar de acordo com os interesses dos cidadãos e não das instituições religiosas. No entanto, o Estado laico não é neutro com relação a valores, pois se encontra vinculado à realidade concreta da convivência social, como são a tolerância, o respeito à pluralidade religiosa, a separação Igreja/Estado, a liberdade de consciência e, inclusive, a liberdade religiosa.

Um dos desafios do Estado laico é a possibilidade de convivência entre valores e crenças religiosas, convivência que só pode concretizar-se na democracia, garantia para enfrentar esse desafio. Como afirma Bovero (2001), “Um laico não pode ser não democrático (…) um democrático é necessariamente laico; se não é, é um falso democrata.”

A laicidade do Estado, entendida do ponto de vista da neutralidade, significa que este reconhece e protege a diversidade de religiões, inclusive deve levar em conta o ethos religioso da sociedade. De tal forma que, nas decisões tomadas pelo Estado, tenham como base a sensibilidade em relação à realidade e às crenças do conjunto da sociedade. Assim, se o Estado é laico, não é de sua competência definir políticas ou leis de acordo com princípios morais específicos.

Do ponto de vista das relações entre religião e política, o assunto se torna mais complexo se não existe clareza em relação ao princípio de laicidade do Estado. Os cidadãos que guiam sua vida por crenças religiosas também são membros da sociedade laica, e isso se torna mais complexo porque as determinações religiosas têm implicações morais e sociais, e as pessoas expressam suas convicções de fé nas atividades como cidadãos na sociedade.

No entanto, não seria democrático rechaçar propostas pelo simples fato de emanarem de fontes religiosas, tais propostas devem ser discutidas e, inclusive, podem ser incorporadas como referências éticas, na medida em que estejam de acordo com os princípios constitucionais e não entrem em choque com os valores do Estado moderno, nem com os do conjunto da sociedade. O problema aparece quando as doutrinas e práticas religiosas se opõem aos valores e às leis emanadas do Estado laico. Isto significa que o Estado e a sociedade também têm como parâmetros referenciais éticos, que são fontes emanadas da cultura, dos costumes e das próprias religiões. A ética é considerada uma das referências do Estado para legislar, pois avalia o comportamento dos seres humanos independentemente de suas convicções políticas ou religiosas.

Assim como o Estado tem o dever de levar em conta o sentimento religioso da sociedade, as instituições religiosas também devem sentir-se sensibilizadas frente aos valores defendidos pelo Estado. O Estado também tem fragilidades e vazios; seus representantes defendem interesses e ideologias, por isso, é fundamental o papel da sociedade civil organizada com propostas e reivindicações, assim como, também, a criação de normas constitucionais para delimitar e controlar sua atuação, tendo como objetivo principal responder aos interesses dos cidadãos.

Concluindo, reconhecemos a importância do aprofundamento e da defesa de um Estado laico, porque só assim assentaremos as bases para enfrentar os desafios que traz consigo a convivência numa sociedade diversa e plural. A não legalização do aborto, os grandes obstáculos para a aprovação e implementação de leis relacionadas com a sexualidade e a reprodução, não são mais do que reflexos de uma sociedade não laica, que tem como parâmetro a intolerância, a moral proveniente de uma determinada religião e a não aceitação de idéias que brotam de outros agentes sociais. O não reconhecimento das mulheres como agentes morais, com capacidade para tomar decisões éticas, constitui um bom exemplo para constatar que um pensamento não laico é autoritário, intolerante e patriarcal. Um bom princípio laico moderno deve ser fonte para o desfrute dos direitos e para a incorporação de novos direitos, partindo da criação de um ambiente propício que reconheça a sabedoria, as capacidades e as reivindicações dos outros/as como sendo justas e válidas.

* A autora é teóloga, doutora em Ciências da Religião pela PUC/SP e integrante da Organização “Católicas pelo Direito de Decidir”. Seu artigo, originalmente em espanhol, foi captado, em 07/07/2008, no endereço www.catolicasonline.org.br

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Ávila, Maria Betânia. Liberdade e legalidade: uma relação dialética. In: Ávlia, Maria Betânia; Portella, Ana Paula; Ferreira, Verônica. Novas legalidades e democratização da vida social: família, sexualidade e aborto. Rio de Janeiro, Garamond, 2005.

Bovero, Michelangelo. Como ser laico. In: Nexos (México), ano 23, vol. XXVIII, no. 282, junho 2001.

Pierucci, Antônio Flávio. Reencantamento e dessecularização: a propósito do auto-engano em Sociologia da Religião. In: Novos Estudos CEBRAP, no. 49, novembro 1997.

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