Para responder a essa pergunta, é preciso ter claro que o ensino religioso continua presente no currículo do Ensino Fundamental. O que saiu da terceira versão da BNCC foi apenas a proposta do FONAPER com uma sequência de conteúdos especificados para cada um dos 9 anos, na perspectiva não(?) confessional. A explicação do MEC foi a seguinte:
“A área de Ensino Religioso, que compôs a versão anterior da BNCC, foi excluída da presente versão, em atenção ao disposto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). A Lei determina, claramente, que o Ensino Religioso seja oferecido aos alunos do Ensino Fundamental nas escolas públicas em caráter optativo, cabendo aos sistemas de ensino a sua regulamentação e definição de conteúdos (Art. 33, § 1º). Portanto, sendo esse tratamento de competência dos Estados e Municípios, aos quais estão ligadas as escolas públicas de Ensino Fundamental, não cabe à União estabelecer base comum para a área, sob pena de interferir indevidamente em assuntos da alçada de outras esferas de governo da Federação.”
Se fosse mantida a formulação das duas primeiras versões, a BNCC estaria contrariando também o parecer CP 97/99 do Conselho Nacional de Educação sobre a matéria, relatada por Eunice Durham no governo FHC. As discussões que levaram ao parecer não eram desconhecidas da então diretora do INEP Maria Helena Guimarães de Castro, hoje secretária geral e ministra de fato.
Não foi uma mera decisão burocrática, foi também política. A proposta do FONAPER impedia o ensino religioso confessional, hoje prevista na legislação de alguns estados, como no RJ, e defendida pela cúpula da Igreja Católica, respaldada na concordata com o Vaticano. É provável que a CNBB pretendesse explicitar o ensino religioso na BNCC com uma redação mais genérica, sem a especificação do FONAPER, para contemplar a opção confessional. Nessa disputa interna ao campo religioso, o MEC preferiu não se meter. Vista assim, a “retirada” do ensino religioso da BNCC, só derrotou o FONAPER.
Voltemos, então, à pergunta: “tivemos algum ganho com isso?” A resposta é positiva, ainda que nada devesse ao protagonismo dos defensores da educação laica nas escolas públicas. No contexto em que vivemos, não piorar já é algum ganho. E podia, sim, piorar muito com a proposta do FONAPER para a BNCC, por quatro razões: (i) induziria a obrigatoriedade de fato de uma disciplina caracterizada como facultativa pela Constituição; (ii) jogaria água na concepção de que o ensino religioso integra a formação do cidadão, ideologia que passou a fazer parte da LDB em 1997; (iii) aumentaria a viabilidade do PL 309/2011, sobre os professores dessa disciplina, apresentado na Câmara pelo deputado-pastor Marco Feliciano (evangélico, de direita), cujo relator é o deputado Pedro Uczai (católico, de esquerda), ligado ao FONAPER; e (iv) reduziria o espaço de manobra do STF no pronunciamento sobre a ADI 4.439, em cuja audiência várias instituições religiosas, inclusive evangélicas pentecostais, se manifestaram convergentes com os laicos, isto é, “ensino religioso fora das escolas públicas”. Os três primeiros pontos têm base objetiva, mas uma manifestação pró-laicidade do tribunal é apenas uma esperança de que ele possa frear um pouco a farra proselitista nas escolas públicas.
A terceira versão da BNCC foi entregue pelo MEC ao CNE, em sessão solene, no dia 6/4/2017. O que fará o conselho é uma incógnita. Buscará uma composição com os interesses não(?) confessionalistas? O presidente do CNE é Eduardo Deschamps, aliado do FONAPER por convicção ideológica e afinidade institucional (é professor da Universidade Regional de Blumenau, celeiro de dirigentes dessa ONG). O presidente anterior, ainda no gozo do mandato, é o frei Gilberto Gonçalves Faria, reitor da Universidade Católica de Brasília, que não deve ser indiferente à posição da CNBB e da concordata sobre o ensino religioso confessional nas escolas públicas.
Uma questão derivada da aqui desenvolvida é a seguinte: “Como falar em ganho na terceira versão da BNCC, se foi suprimida a expressão orientação sexual de várias passagens dela, como a que previa a rejeição dos preconceitos de etnia, gênero, orientação sexual, idade, habilidade/necessidade, convicção religiosa ou de qualquer outra natureza?” Sabemos de onde partiu a demanda dessa castração: dos dirigentes de igrejas cristãs, não de todas, mas das mais importantes, a católica e as evangélicas pentecostais. Aqui, sim, houve uma perda dos movimentos feministas e LGBTT, apoiados pelos laicos. Mas, não devemos esquecer de que parte desses movimentos tem uma atitude instrumental da laicidade das escolas públicas, que é concebida numa perspectiva tática, não estratégica: vale se for para combater os preconceitos de sexo e de gênero dos religiosos fundamentalistas. Como há igrejas que já aceitam gays sem prévia condenação, a questão do ensino religioso é deixada em segundo plano e até suprimida da pauta de reivindicações, para não comprometer a aliança com elas.
Pois a laicidade das escolas públicas (o ensino religioso é sua negação) é estratégica: dela depende, fundamentalmente, a liberdade de crença e seus desdobramentos em termos de conteúdos e de pedagogia. Sabemos que a presença da religião nas escolas públicas, numa disciplina específica e fora dela, restringe a liberdade de pensar, de discutir, inclusive questões de sexo e de gênero. Ademais, traz para dentro da escola a competição entre as instituições religiosas pela hegemonia; e delas todas contra os não religiosos. O portal do OLE´ disponibiliza e refere inúmeros textos sobre isso.
Concluindo: a correta compreensão do que é a dimensão estratégica da laicidade na educação pública, autoriza a afirmação de que a supressão da proposta do FONAPER da BNCC foi um ganho. Pequenino diante da imensidão da luta, mas ainda assim um ganho. Ele não deve ser minimizado por causa da supressão (que não pode ser confundida com proibição, a luta continua!) da expressão orientação sexual do texto da BNCC. Não se deve avaliar uma em função da outra, pois as questões de sexo e de gênero não se confundem com a ampliação da presença da religião nas escolas públicas, por mais que, na prática, existam vínculos e até identidade entre os que defendem a restrição daquelas e a expansão desta no projeto reacionário de educação. A confusão teórica impede uma adequada prática política, numa luta que promete ser longa e difícil.