TUTELA RELIGIOSA DA MORAL COLETIVA

Parece que tudo o que diz respeito ao sexo e à reprodução é objeto de tabus religiosos, pelo menos nas tradições religiosas chamadas abraâmicas – o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. São tabus muito antigos e difíceis de remover. Os tabus religiosos tornam-se problema político quando as sociedades religiosas usam o Estado para exercerem a tutela moral de toda a Sociedade.

A coeducação, isto é, a presença de meninos e meninas nas mesmas salas de aula foi condenada pela Igreja Católica durante muito tempo – seus colégios destinavam-se a meninos ou a meninas, conforme fossem administrados por padres, frades ou freiras. Aqui no Brasil, a principal crítica que os dirigentes católicos tinham à Lei Orgânica do Ensino Secundário, de 1941, é que ela não obrigava a separação dos meninos e das meninas nas aulas do ginásio. Misturá-los seria favorecer a promiscuidade moral. Demorou, mas essa posição foi modificada depois do Concílio Vaticano II, e numerosas escolas católicas passaram a adotar o regime de salas de aula mistas.

A luta contra a tutela religiosa da moral coletiva marcou seu primeiro tento na primeira Constituição republicana, que instituiu o casamento civil e, com ele, a legalização dos filhos de uniões realizadas fora do âmbito religioso. Demorou muito mais a luta pela legalização do divórcio. Contra a possibilidade legal de dissolução da união matrimonial, reagiu a Igreja Católica, mas não as Evangélicas. Afinal, a força política da primeira não foi suficiente para impedir a aprovação, pelo Congresso Nacional, da lei 6.515, de 26 dezembro de 1977.

Impõe-se, agora, a retirada da tutela religiosa sobre outros aspectos da moral coletiva, como a interrupção voluntária da gravidez e a legalização da união homoafetiva. O aborto nem o casamento homoafetivo são posições próprias da laicidade. O que o Estado laico garante é que essas questões sejam debatidas por toda a Sociedade, a partir do que a legislação é mantida ou alterada. Jamais a imposição a toda a Sociedade de leis que convêm a apenas parte dos cidadãos, como os adeptos de certas religiões.

O aborto é tratado, no Brasil, como questão de polícia. O artigo 124 do Código Penal (ainda dos anos 40) prevê pena de prisão de um a três anos para a mulher que provocar o aborto em si mesma ou consentir que outra pessoa o faça. A exceção fica por conta de gravidez resultante de estupro ou que acarrete grave perigo para a saúde da mulher.

Por causa dessa criminalização, a quantidade de mulheres que interrompem a gravidez, clandestinamente, é enorme – as estimativas são de um milhão por ano. As conseqüências do aborto realizado sem cuidados médicos adequados já constituem a quarta causa de morte materna no Brasil. E a curetagem feita na rede pública, em mulheres que abortam sem cuidados médicos, chega à posição de segundo procedimento obstétrico mais frequente. O aborto continua sendo feito por pessoas inabilitadas ou por clínicas clandestinas. Esse quadro penaliza as mulheres mais pobres, que não têm condições econômicas de serem atendidas por clínicas bem equipadas. Portanto, mais do que problema de polícia, o aborto é um problema de saúde pública.

Apesar dessa evidência, há sociedades religiosas que rejeitam a descriminalização do aborto, mesmo sendo ele praticado pelos seus adeptos. Diante desse tipo de intransigência, há movimentos que desafiam a interferência dos dirigentes religiosos nessa matéria e defendem o direito das mulheres decidirem sobre a interrupção da gravidez, em condições muito mais amplas do que a lei atual permite.

Para enfrentar o problema, vários parlamentares apresentaram projetos de lei visando descriminalizar o aborto até um certo período após a fecundação e a qualquer momento quando a gravidez implicar risco de vida para a mulher ou em caso de má formação fetal, incompatível com a vida. Contra ele se levantam sociedades religiosas que bradam contra o que dizem ser o “direito de matar” e se aliam pela “defesa da vida e da família”, assim como pelos planos de saúde, atentos para suas planilhas de custos.

Outra questão importante, na atualidade, é a união homoafetiva, também chamada de casamento civil igualitário, que a legislação brasileira não contempla. Atualmente, apenas a união entre homem e mulher pode ter o status de entidade familiar, e é reconhecida pela legislação, com repercussões práticas de grande importância para os nela envolvidos, como direitos previdenciários e securitários, além de herança.

Embora sem a explícita cobertura da legislação, alguns avanços foram feitos no sentido da legalização de uniões homoafetivas. Em certas unidades da Federação, foram aprovadas normas, que reconhecem essas uniões, onde os parceiros homoafetivos foram equiparados à condição de companheiro ou companheira, com tratamento igual aos de sexos diferentes, para efeitos previdenciários do sistema estadual e do município da capital. Em 5 de maiode 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.No mesmo dia o STF estendeu os direitos dos companheiros de uniões estáveis aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.

Apesar dessas mudanças, na direção do que vem sendo feito em outros países, que já instituíram o casamento homoafetivo, a reação das sociedades religiosas dominantes é de repúdio ao que entendem ser uma doença, uma perversão, um pecado. Mas, nesse caso, a tutela religiosa sobre a moral coletiva está sendo minada de dentro do próprio Estado, especialmente da parte do Poder Judiciário, que tem encontrado brechas para garantir certos direitos aos parceiros de uniões estáveis, quando do mesmo sexo.

As questões da descriminalização do aborto e das uniões homoafetivas revelam o descompasso entre os processos de laicidade do Estado e de secularização da Sociedade. Na primeira questão, a laicidade do Estado está mais atrasada em relação à Sociedade, mais secularizada; na segunda questão, a relação é inversa.

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