URUGUAI

Por sua estratégica situação na margem esquerda do Rio da Prata, junto a sua foz, a fortificação e Colônia do Santíssimo Sacramento, instaladas pela coroa portuguesa no século XVII, em frente a Buenos Aires, foi alvo de diversas disputas militares e diplomáticas. Aos espanhóis não interessava a presença militar portuguesa justamente na via por onde era transportada a prata andina; aos portugueses interessava garantir o acesso à bacia fluvial do Rio Paraná, caminho para Goiás e Mato Grosso. Em 1777, o Tratado de Santo Idelfonso reconheceu a soberania espanhola sobre a Colônia do Sacramento, bem como a de Portugal sobre a Ilha de Santa Catarina.
No início do século XIX, a Banda Oriental do Uruguai integrava o Vice-Reinado do Rio da Prata. Com a ocupação da Espanha pelas tropas de Napoleão, todas as colônias espanholas da América desencadearam lutas pela independência, inclusive o Uruguai, com a liderança de José Artigas. Mas o domínio espanhol na Banda Oriental só terminou com o desembarque de tropas argentinas em 1815 e a tomada de Montevidéu por Artigas. No ano seguinte, o Uruguai foi ocupado por tropas luso-brasileiras enviadas pelo príncipe regente do Reino Unido do Brasil e de Portugal. Com a independência brasileira, em 1822, o Uruguai foi anexado ao Império como Província Cisplatina. A oposição ao Brasil acabou por fazer o pêndulo oscilar para o lado contrário, de modo que o Uruguai foi incorporado às Províncias Unidas do Rio da Prata, futura Argentina. As forças conjuntas uruguaias-argentinas derrotaram as brasileiras em 1827, no momento em que as preocupações políticas do Rio de Janeiro se concentrava na repressão aos movimentos internos secessionistas e de oposição ao próprio imperador, que veio a abdicar alguns anos depois. O conflito foi arbitrado pela Inglaterra, interessada na manutenção de um modus vivendi na região favorável ao seus interesses até então hegemônicos. Disso resultou na criação do Uruguai, em 1828, pelo Tratado do Rio de Janeiro, como Estado tampão entre Brasil e Argentina, mas não o livrou das disputas entre ambos os países. Com efeito, em diferentes momentos de sua história, o Uruguai ressentiu-se de intervenções militares e/ou políticas, ora argentina, ora brasileira.
A prosperidade econômica resultante da exportação de trigo, carne e lã, atraiu grande número de imigrantes europeus, e fez do Uruguai um país com nível de vida dos mais elevados do mundo, até a década de 1960, a ponto de ser chamado de “Suíça da América”.
A constituição uruguaia de 1830 garantia a liberdade de crença e de culto, mas reconhecia a religião católica, apostólica romana como a religião do Estado. Não havia escravos no território do país. Para ser cidadão, era preciso, dentre outros requisitos, saber ler e escrever.
O Uruguai passou por um processo de secularização da sociedade e/ou de laicidade do Estado mais intenso do que os demais países da América Latina. Isso se explica pelo fato de que a colonização espanhola foi tardia no território onde o país veio a se constituir, devido à falta de riquezas minerais. A presença da Igreja Católica também foi débil, pela mesma razão, acrescida da ausência de populações indígenas de cultura complexa, que valesse a pena converter ao Cristianismo. Os padres eram poucos e dispersos pelo território, praticamente sem “alto clero”. A diocese de Montevidéu, a única do país por décadas, foi criada tardiamente (1878). Os jesuítas, responsáveis pela difusão do catolicismo em muitas regiões da América Ibérica, permaneceram pouco tempo no Uruguai: chegaram em 1745 e já em 1767 foram expulsos da Espanha e de todas suas colônias. No ano da independência, havia apenas uma centena de sacerdotes católicos em todo o Uruguai.
Três décadas depois da promulgação da Constituição, o Uruguai era um país de imigrantes. O censo de 1860 registrou 35% de estrangeiros, proporção essa que subia a praticamente 50% na capital. A receptividade a novas ideias e uma abertura para o mundo eram consequências dessa composição social. Assim, o Estado uruguaio foi constituído de modo inclusivo, atuando para integrar os imigrantes em um projeto nacional homogeneizador, que compreendia a laicidade. Mais cedo do que outros países da região, o país permitiu o culto protestante no seu território (1843), sem nenhum incidente notório (GUIGOU, 2000).
As elites uruguaias foram influenciadas mais pelo positivismo anglo-saxônico (sobretudo Spencer) do que pelo francês (Comte), como aconteceu com as dos vizinhos Argentina e Brasil. As posições liberais e maçônicas, presentes há muito na elite, teve
seu contraponto no povo, influenciado pelos imigrantes italianos garibaldinos. Depois de participar a revolução farroupilha, no sul do Brasil, Garibaldi mudou-se para o Uruguai, onde viveu de 1842 a 1848. Depois de lecionar Matemática numa escola de Montevidéu, combateu os argentinos, que invadiram o país, dirigindo a marinha e a Legião Italiana¹. Os garibandinos, como os imigrantes peninsulares que vieram depois deles, eram ostensivamente anti-clericais, devido aos empecilhos que o Vaticano interpunha aos movimentos pela unidade da Itália.
Na segunda metade do século XIX, o território do Uruguai correspondia a uma diocese da Igreja Católica, cujo bispo desenvolveu intensa atividade de alinhamento com os ditames de Pio IX, especialmente o Syllabus. Em decorrência disso, foram reprimidas internamente as correntes católicas aliadas da Maçonaria, bem como os religiosos mais liberais, como os franciscanos. Em 1859, os jesuítas foram expulsos do Uruguai, no bojo de um conflito com os maçons, denominado de “roubo de meninas para os conventos”².
Boa parte dos conflitos que conduziram ao processo de laicidade do Estado uruguaio foi interno ao campo religioso: correntes católico-jesuíticas, alinhadas com o ultramontanismo do Vaticano, contra correntes católico-maçônicas, de orientação liberal. O Estado era, então, ora caixa de ressonância desse conflito, ora interventor direto nele. (GUIGOU, 2000) No campo religioso, venceu a corrente ultramontana, ao que correspondeu um crescente anti-clericalismo na sociedade e a laicidade do Estado.
A laicização do Estado uruguaio deu o primeiro passo com a secularização dos cemitérios, em 1861, que passaram da administração da Igreja Católica para as municipalidades. Isso se deu em reação à negativa eclesiástica para que um importante maçom fosse enterrado no cemitério público da cidade de San José, e em Montevidéu, em nova tentativa.
Novo conflito Estado-Igreja ocorreu no mesmo ano, quando o bispo de Montevidéu destituiu o vigário da matriz, que era também senador governista. O presidente da república arguiu o regime do padroado (aliás inexistente no Uruguai) para obrigar o bispo a revogar o ato. Diante da negativa, o prelado foi obrigado a deixar o país, refugiando-se em Buenos Aires, de onde prosseguiu na direção dos negócios da diocese.
Mesmo com a adesão de alguns sacerdotes, a pretensão do governo uruguaio de nomear um substituto ao bispo não obteve consentimento dos católicos. O presidente recuou e baixou decreto, no ano seguinte, anulando o anterior. Assim, um ano depois de expatriado, o bispo retornou ao seu posto em Montevidéu, como, também, recebeu para uso católico o cemitério central da capital, que havia sido secularizado, em cerimônia da qual participaram o presidente e sua esposa. A despeito dessa concessão, o decreto de secularização dos cemitérios foi mantido.
Na década seguinte, o mais importante marco da laicidade uruguaia foi fincado, justamente na área educacional – pelo menos é assim que aparece na história oficial.
Seu protagonista foi José Pedro Varela.

Filho de comerciantes e jornalista, José Pedro Varela foi, incontestavelmente, a figura mais importante da educação pública uruguaia no século XIX. Em 1867, aos 22 anos, ele conheceu Domingo Sarmiento, nos Estados Unidos, embaixador argentino naquele país, que lhe apresentou a obra de Horace Mann, o já famoso reformador educacional de Massachusetts. O entusiasmo de Sarmiento com o potencial transformador da educação contaminou Varela, que, de volta a Montevidéu, no ano seguinte, proferiu conferência no Instituto de Instrução Pública, na qual defendeu uma escola pública para todos, sem distinção de classes, para formar cidadãos. Seu entusiasmo teve eco, de modo que foi criada logo em seguida a Sociedade Amigos da Instrução Popular. A entidade dedicou-se não só à divulgação do pensamento e da prática educacional renovadora nos Estados Unidos e na Europa, como, também, criou uma escola experimental e uma escola normal, para a formação de professores.
O pensamento de Varela era eclético, combinando elementos do positivismo, especialmente a crítica dos preconceitos baseados no Cristianismo, e sua confiança na ciência – “a ilustração do povo é a verdadeira locomotiva do progresso”, dizia ele. Mas a orientação política de Varela era bem outra, pois a “ditadura republicana” de Comte foi substituída pela ênfase na democracia com participação popular.
No livro La escuela del Pueblo, de 1874, Varela defendeu os quatro princípios que deveriam reger a instrução popular na democracia: universalidade, gratuidade, obrigatoriedade, laicidade. A expectativa era grande e explícita diante da capacidade democratizante da escola pública. Ao invés de ser destinada aos pobres, ela deveria acolher a todos, independentemente de condição social.  Pelo simples fato de os alunos frequentarem a mesma escola, na qual eram iguais, com os mesmos direitos, eles se acostumariam a tratar-se como iguais quando adultos. Assim, a escola pública, obrigatória e gratuita, era entendida por Varela como sendo “o mais poderoso instrumento para a prática da igualdade democrática”.
A ação do Estado na educação não implicaria a partidarização da escola. A administração educacional deveria ser independente da administração pública, de modo que a educação do povo não sofresse com as oscilações das convulsões políticas. A escola pública deveria visar um fim social, não religioso. A religião deveria ficar no âmbito da família e da igreja. A escola laica deveria pautar-se pelo respeito a todas as religiões, mas, sobretudo, na neutralidade diante delas e na tolerância para com elas.
Um ano depois de La escuela del Pueblo, Varela publicou La legislación escolar, no qual apresentou projeto de reforma educacional, que detalhou até o nível das disciplinas que deveriam ser ensinadas nas escolas públicas. O sistema nacional de educação foi concebido por Varela nas seguintes etapas e segmentos: jardins da infância, para crianças de 3 a 6 anos; ensino primário, obrigatório para crianças e jovens de 5 a 15 anos; ensino secundário, para atender às necessidades ulteriores da vida; formação de
mestres, baseada na concepção positivista da educação científica.
Em 1876 Varela foi nomeado Diretor de Instrução Pública, cargo que ocupou durante o governo ditatorial do coronel Lorenzo Latorre. Logo no início de sua gestão apresentou projeto que deu origem ao Decreto-Lei de Educação Comum, promulgado em 24/8/1877. O artigo 18 desse decreto-lei determinava:
O ensino da religião católica é obrigatória nas escolas do Estado, excetuando-se aos alunos que professem outras religiões, e cujos pais, tutores ou encarregados se oponham a que a recebam.
A Igreja Católica se opôs veementemente a esse dispositivo pelo fato de o ensino religioso não ser obrigatório para todos os alunos, além de ela não ter o controle sobre quem o ministraria. Sua rejeição ao Decreto-Lei de Educação Comum incidia, também, sobre a composição mista das classes, que vieram a ser chamadas pelo bispo de Montevidéu de “harém da educação”.
Apesar da presença do ensino religioso no currículo, a história oficial da educação uruguaia considera a laicidade como elemento integrante do Decreto-Lei da Educação Comum, ao lado da universalidade, da obrigatoriedade e da gratuidade. Em 1879, falecido José Pedro Varela, aos 34 anos, sua obra à frente da Diretoria de Instrução Pública teve prosseguimento por seu irmão Jacobo, sem solução de continuidade, por mais dez anos. Dois anos depois da escola primária, a laicidade do Estado se estendeu ao registro civil, em 1879, e, em 1885, ao matrimônio civil obrigatório, como condição prévia ao casamento religioso, este facultativo. No mesmo ano foi promulgada a Lei do Ensino Secundário e Superior, na qual o conflito entre a extensão da educação comum a todos e a preparação para o ingresso na universidade estavam em permanente conflito. A possibilidade de um aluno não ter de frequentar as aulas de ensino religioso, na escola primária, deu lugar à inexistência de tal disciplina na escola secundária. É também de 1885 a Lei dos Conventos: além de proibir a entrada de sacerdotes estrangeiros no país, a lei declarou ilegais os conventos e estabelecimentos dedicados à vida contemplativa.
O esforço na formação de docentes para as escolas primárias comuns, incidia sobe a situação retratada pelas estatísticas de 1883 (CAETANO, 2013). Os professores homens, mais propensos à laicidade educacional, eram majoritariamente estrangeiros (66%), enquanto que suas colegas mulheres, em grande maioria uruguaias (80%), eram mais inclinadas ao ensino religioso na escola pública.
A Igreja Católica procurou retomar a hegemonia ameaçada mediante a realização de congressos e a criação de instituições paralelas, como escolas, sindicatos e até mesmo de ação política – a União Social, a União Econômica e a União Cívica. Apesar disso, a laicidade do Estado avançava.
Em 1906 foram retirados os crucifixos de todos os hospitais públicos. Em 1907 foram retiradas todas as referências a Deus e aos Evangelhos no juramento dos parlamentares e, em 1911, o mesmo para os edis. Entre 1907 e 1913 foram promulgadas leis progressivas sobre o divórcio. No início, o divórcio somente poderia ser requerido pelo marido, mas logo assumiu uma feição revolucionária para a época, pois a dissolução do vínculo conjugal poderia ser feito apenas a partir do requerimento da mulher.
Em 1909 a escola pública passou a ser inteiramente laica, retirando-se dela todo e qualquer ensino religioso. Apresentado por deputado, em 1908, no ano seguinte foi aprovado projeto de lei que determinava a “supressão de todo ensino e prática religiosa nas escolas do Estado.” A lei determinava, também, que a Direção Geral de Instrução Primária definisse os casos em que se devessem aplicar penalidades (de suspensão a demissão) aos professores que a transgredissem.
Para a Igreja Católica, essa lei representou a institucionalização da “escola sem Deus”.
Para os evangélicos, no entanto, a lei foi favorável à liberdade religiosa e a suas próprias iniciativas educacionais. Um bom exemplo foi apresentado por Caetano (2013). Apesar das afinidades com os pressupostos da legislação de 1877, a colônia dos vandenses, de origem italiana, no Uruguai mantinha suas próprias escolas primárias, com dificuldades.
Imediatamente após a promulgação da lei de 1909, seu consistório solicitou e obteve a incorporação de suas escolas ao Estado. Elas passaram a ser, então, públicas, laicas e obrigatórias.
Na gestão do presidente José Battle y Ordoñez (1911-1915) foram feitas importantes reformas sociais e políticas. Os principais serviços públicos (água, eletricidade, telefones, gás e transportes) e algumas indústrias foram estatizadas. Junto com prosperidade econômica propiciada pelas exportações de carne e lã, o nível de vida do povo uruguaio foi bastante elevado. Foi no prosseguimento dessa prosperidade, que impulsionou a onda imigratória, que mais e importantes medidas laicas foram tomadas.
Guigou (2000) menciona em sua dissertação autores que apontam a existência de um apoio popular para a laicidade do Estado: as medidas de laicização durante a gestão de Battle teriam se alimentado de um anticatolicismo popular, produto mais das experiências ultramontanas italianas e espanholas trazidas pelos imigrantes do que da real experiência no interior da Igreja uruguaia. Na última década do século XIX, essa onda anticlerical foi reforçada pela imigração de anarquistas e socialistas, italianos e espanhóis.
Em 1911 foi eliminada toda referência religiosa do Código Militar, bem como suprimidas honras e sacramentos dos ritos militares.
Em 1917 a reforma da Constituição, que entrou em vigência em 1919, estabeleceu a separação entre a Igreja Católica e o Estado. Duas correntes de pensamento se enfrentaram no que dizia respeito ao artigo 5º. Uma corrente defendia o alinhamento com a legislação francesa, ou seja, que a república não reconheceria culto algum e expropriaria as propriedades eclesiásticas; outra corrente defendia a manutenção do reconhecimento do catolicismo como a religião da maioria do povo uruguaio e a manutenção das propriedades da Igreja. Prevaleceu uma solução de compromisso, que consistiu na determinação de liberdade de culto no Uruguai e que o Estado não sustentaria culto algum. A Constituição reconheceu a propriedade da Igreja Católica sobre os templos construídos com fundos públicos, exceto as capelas de asilos, hospitais, prisões e outros estabelecimentos públicos. Além de reconhecer a propriedade sobre os templos, a Constituição isentou-os de todo tipo de impostos, privilégio que foi estendido aos de outras religiões. A redação desse artigo da Constituição uruguaia permaneceu inalterado, apesar das numerosas reformas havidas desde então.
No mesmo ano em que a reforma constitucional entrou em vigor, 1919, os feriados religiosos foram secularizados: o Natal foi transformado em Dia da Família; a Semana Santa em Semana de Turismo; o Dia de Reis, em Dia das Crianças; o Dia da Virgem em Dia das Praias, por ser comemorada no início do verão. Cerca de 30 cidades mudaram de nome, como, por exemplo, Santa Isabel, que se tornou Paso de los Toros.
O anticlericalismo foi a tônica de muitas manifestações públicas nessa época, como os “banquetes da promiscuidade”, a que Néstor da Costa (2011) faz referência. Personalidades públicas convocavam a população pelos jornais para banquetes, na sexta-feira santa, em frente à catedral ou a outras igrejas importantes de Montevidéu. Nesses eventos eram servidos pratos de carne bovina, alimento proibido aos católicos nesse dia.
A economia uruguaia entrou em declínio na década de 1950, por razões decorrentes do mercado internacional. O valor declinante dos produtos exportados levou ao fim da prosperidade e, já na década seguinte, a agitação política mudou o cenário político marcado pelo secular bipartidarismo. Surgiram partidos políticos revolucionários, de orientação marxista, dos quais o mais notável foram os Tupamaros. Na direita foram
organizados grupos paramilitares, como a Juventude Uruguaia de Pé, definindo-se um cenário de aberto conflito político, cada vez mais militarizado. O pacto liberal-democrático foi rompido, em 1973, por uma ditadura militar que se estendeu até 1985.
Durante a ditadura, o conceito de laicidade do Estado se manteve, mas mudou de significado. Como mostrou Federico Cavanna em sua tese (2013), violar a laicidade deixou de estar relacionado à religião, e passou a ser um assunto de caráter político- ideológico: os marxistas ou os que eram assim classificados pela repressão policial.
Esse autor mostrou que um livro sobre o fundamento político-filosófico da laicidade e sua crise, premiado pelo governo uruguaio em concurso público, em 1972, trouxe toda uma conceituação que permitia denunciar os opositores do regime como inimigos das tradições nacionais e como hereges dos valores patrióticos, por pertencerem a uma seita dogmática, que tinha interesses em Moscou. Depois do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica aceitara os parâmetros da democracia, portanto já não era vista como ameaça ao Estado laico. O inimigo da laicidade passara a ser, então, o “marxismo internacional”.
Uma tentativa de institucionalizar o regime, em 1980, mediante aprovação plebiscitária de uma constituição elaborada pelos militares, fracassou. Diante das mudanças políticas nas ditaduras dos vizinhos Argentina e Brasil, os militares uruguaios anunciaram plano de devolução do poder aos civis, para o que foram convocadas eleições nacionais, realizadas em 1984. O Poder Legislativo foi reconstituído e eleito para o Executivo o ex-presidente Julio Maria Sanguinetti, do Partido Colorado. Desde a posse do primeiro presidente pós-ditadura, o princípio da laicidade uruguaia voltou ao seu significado original, mas novas situações o põem à prova.
A primeira situação ficou conhecida como a “cruz do papa”. Em 1987 João Paulo II visitou o Uruguai e celebrou missa numa praça central de Montevidéu, para o que foi erguida uma cruz de ferro com 30 metros de altura. Finda a visita, os jornais publicaram opiniões polêmicas sobre o destino da cruz: se deveria permanecer num logradouro público ou se deveria ser transferida para um local de propriedade da Igreja Católica. A
natureza laica do Estado foi evocada pelas duas correntes opostas de opinião, com distintos argumentos. A polêmica chegou às instâncias legislativas. A cruz foi rejeitada pelo Poder Legislativo da municipalidade de Montevidéu, mas foi aprovada pela instância nacional.
Ao contrário da cruz, outro monumento religioso em logradouro público não suscitou polêmica. Foi a estátua de Iemanjá, da Umbanda, culto afro-brasileiro que cresce no Uruguai. Pais e mães de santo solicitaram autorização da administração municipal de Montevidéu para a construção da estátua em frente ao mar onde a festa de Iemanjá era celebrada todos os dias 2 de fevereiro. A autorização foi concedida, a estátua erigida e inaugurada com a presença de membros graduados da municipalidade, sem que houvesse suscitado reações dos setores laicos.
Na opinião de Néstor da Costa (2009), não houve mudança da orientação geral da população nem dos poderes públicos com respeito à laicidade do Estado. O que explicaria a existência de reações à “cruz do papa” e a aceitação tácita de Iemanjá tinha a ver com a Igreja Católica, protagonista histórica da questão da laicidade no Uruguai. Diferentemente dela, a Umbanda não tinha antecedentes ultramontanos. Entretanto, outros autores, como Caetano (2013), veem nesses episódios sinais da desprivatização da religião no país.
Com a chegada da Frente Ampla ao poder, com a posse do médico católico Tabaré Vásquez na presidência da República, em 2005, um projeto de lei de despenalização do aborto foi apresentado, com apoio do Partido Socialista, ao qual o presidente era filiado havia muitos anos. Como o partido havia aprovado oficialmente apoiar essa iniciativa parlamentar, Tabaré Vásquez solicitou desfiliação e prometeu vetar a lei, se aprovada.
De fato, aprovada a lei, o presidente a vetou, alegando razões de consciência. Ao contrário do Brasil, os partidos de direita do Uruguai não serviram para instrumentalizar as posições religiosas contra o aborto. Nesse país foram empregados mais argumentos filosóficos, para condenar o aborto, do que citações bíblicas, embora a direção da Igreja Católica tenha ameaçado de excomunhão os parlamentares que votassem pela aprovação da dita lei. (FARINELLI, 2013)
A posse de José Mujica na presidência da República, em 2010, em decorrência de nova vitória da Frente Ampla, em 2010, levou a que o projeto de lei fosse reapresentado, aprovado e sancionado em 2012. O aborto foi, então, legalizado no Uruguai, se feito nas 12 primeiras semanas de gestação, prazo estendido a 14 semanas em caso de estupro, ou
em qualquer mês de gestação se o feto apresentar má formação, incompatível com a vida extrauterina, ou, ainda, quando a vida ou a saúde da mulher estiver em risco. Em todos os casos, essas possibilidades são legais apenas para cidadãs uruguaias, as quais devem manifestar sua decisão final para esse procedimento após atendimento em centros públicos de informação médica e social.
Começa a aparecer, no Uruguai, um alerta sobre o crescimento de ator religioso que, para uns, pode vir a constituir ameaça para a laicidade do Estado maior do que a Igreja Católica: as filias uruguaias de instituições evangélicas brasileiras, principalmente a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Internacional da Graça de Deus. A atuação dessas igrejas fez com que a proporção de evangélicos no país aumentasse de 6% para 11%, de 1991 para 2011, enquanto que a de católicos diminuísse de 56% para 45%, no mesmo período intercensitário. A comparação com o Brasil é imediata, mas as diferenças são postas em relevo, como na análise de Felipe Arocena, sociólogo da Universidade da República: “No Brasil, as igrejas evangélicas são um fenômeno político porque os partidos são muito jovens e debilitados. O Uruguai tem partidos seculares e muito mais consistentes internamente, que dificilmente se deixaria instrumentalizar por um discurso meramente religioso e tampouco facilitariam o surgimento de um partido ligado a uma ou outra corrente evangélica.” (apud FARINELLI, 2013)
De todo modo, o campo religioso está em mudança no Uruguai, como resultado da ação de grupos provenientes do Brasil, seja na Umbanda seja no Cristianismo evangélico. Agora não é mais a Igreja Católica que pretende manter o ensino de sua religião nas escolas públicas, como acontecia no quadro do ultramontanismo do século XIX; são religiões distintas que pedem ao Estado que seja inserida no currículo uma disciplina que dê aos alunos informações sobre todas elas, sem intuito proselitista. Foi esse o teor do documento que os representantes de 15 religiões, participantes do Fórum Interreligioso Uruguaio, realizado em junho de 2011, encaminharam ao Ministério da Educação. Argumentaram que a laicidade do Estado deve ser mantida, mas passando de uma posição excludente para uma posição inclusiva, isto é, que abrangesse todas as religiões. Ateus, agnósticos e religiões não institucionalizadas não foram mencionados.
BIBLIOGRAFIA
CAETANO, Gerardo (org). El “Uruguay Laico” – matrices y revisiones, Montevideo: Taurus, 2013.
 CAVANNA, Federico José Alves. História do conceito de laicidade no Uruguai: do batllismo à doutrina da segurança nacional (1903-1972), Tese de doutorado em História, Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2013.
COSTA, Néstor da. “La laicidade uruguaya”, Archives de siences sociales des
religions (Paris), nº 146, avril-juin 2009.
COSTA, Néstor da. “El fenómeno de la laicidad como elemento identitario. El caso uruguayo”, Civitas – Revista de Ciências Sociais (Porto Alegre), vol. 11, nº 2, 2011.
FARINELLI, Victor, “Uruguai: o Estado laico é possível”, Revista Fórum, nº 117, 2013, acessado em 10/2/2014  no endereço http://revistaforum.com.br/blog/2013/12/ok-uruguai-o-estado-laico-e-possivel/
GUIGOU, Nicolás. A narração laica: religião civil e mito-praxis no Uruguai,
Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000.
GUIGOU, Nicolás. Laicidad en el Uruguay: mitos y transformaciones de la religión civil uruguaya, acessada em 10/12/2013 no endereço

¹ Entre 1839 e 1851 as disputas entre os partidos uruguaios blanco e coloroado foram potencializadas pelas intervenções dos partidos argentinos federalista e unitário, o que acabou em guerra entre os dois países, somente terminada com a intervenção da França, da Grã-Bretanha e do Brasil.
² Esse incidente consistiu em carta de um padre jesuíta para uma moça que queria dedicar-se à vida monástica, contrariando a vontade dos pais. O padre aconselhou-a a ouvir a voz de Deus mais do que a dos pais. Publicada na imprensa, a carta suscitou forte polêmica.

Agenda de atividades

Copyright 2024 - STI - Todos os direitos reservados

Skip to content