Postado por jamsepulveda2 em 06/maio/2020 - Sem Comentários
A ideia de que o país vai quebrar se mantivermos o isolamento social por causa de uma “gripezinha” esconde a perversidade de um sistema que concentra riqueza na mão de poucas pessoas e despreza os mais pobres
Por Amanda Mendonça e José Antônio Sepúlveda*
Estamos vivendo a primeira grande crise de saúde pública do
século XXI. Os números são assustadores e amplamente informados pela grande
mídia, como mostra a situação da Itália e Espanha, que apresentam um altíssimo
índice de mortalidade provocado pela doença. Vemos no mundo todo esforço de
mobilização dos países centrais do capitalismo de salvar suas economias através
de uma ampla participação do Estado, garantindo renda aos mais pobres e
assegurando o isolamento social.
O Brasil, apesar de uma mudança significativa no discurso apresentado pela
grande mídia, que passou a defender a intervenção do Estado e políticas
públicas, está indo na contramão dos esforços mundiais. Há um forte debate
incitado a partir de pronunciamentos do presidente da república sobre uma falsa
polêmica: salvar vidas versus preservar a economia e os empregos. A ideia de
que o país vai quebrar se mantivermos o isolamento social por causa de uma
“gripezinha” esconde a perversidade de um sistema que concentra riqueza na mão
de poucas pessoas e despreza os mais pobres.
É preciso considerar também que, até o momento, a maioria das mortes que estão
sendo contabilizadas estão nos hospitais privados. Mas, não temos dúvidas de
que atingirá também os mais pobres, público alvo de um fundamentalismo
religioso. E pensar essa relação das camadas mais pobres com a religião, o
papel que a ciência e o Estado cumprem ou devem cumprir tornou-se elemento de
grande importância diante da conjuntura que atravessamos.
A evidente relevância das ciências nesse momento de pandemia, configura-se como
um problema para grupos fundamentalistas, que possuem um discurso
anticientíficas e anti-intelectualistas em suas narrativas de mundo. Dessa
forma, frente a pandemia, a opção desses grupos religiosos é a de minimizar a
importância da doença. Em vídeos recentes, amplamente divulgados pelas redes
sociais, dois líderes religiosos importantes disseram que não fechariam suas
igrejas por causa de uma gripe e que a fé em Deus seria o suficiente para
derrotar o vírus. O presidente da república se tornou o exemplo mais evidente
do dilema trazido pelo fundamentalismo religioso: frente a pandemia só a
ciência é capaz de garantir vidas e a própria manutenção das relações sociais,
mas isso significa negar um discurso que manteve suas bases fiéis até o
momento. A escolha feita foi: o presidente incluiu as religiões como serviços
essenciais, decreto 10.292/20, garantindo os interesses dos grupos mais
fundamentalistas.
O comportamento do poder público brasileiro e do chefe do executivo não
surpreendente. Há muito que a imbricação entre religião e Estado está cada vez
mais forte no Brasil. Diferentes instituições religiosas interferem
cotidianamente em nossos órgãos legislativos e de maneira muito evidente
orientam o executivo federal. Diante do inevitável crescimento dessa pandemia a
laicidade, ou seja, separação entre Estado e Igreja, torna-se cada vez mais
importante. E neste cenário complexo, de muitas redefinições em curso, de luta
política acirrada por um outro mundo pós pandemia, o Brasil também tem a chance
de rever a relação histórica do nosso Estado com as religiões. Esperamos que
nossas políticas públicas, leis e ações governamentais respeitem e reconheçam a
ciência e os diferentes campos de estudos e que sejam para todos e todas,
crentes e não crentes. Medidas necessárias nesse momento para nossa saúde, para
nossa sobrevivência, mas para o nosso futuro. Um futuro democrático.
*Amanda Mendonça é doutora em política social,
professora de sociologia e pesquisadora do Observatório da Laicidade da
Educação
*José Antônio Sepúlveda é doutor em educação,
professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
Fluminense e coordenador do Observatório da Laicidade da Educação