José Antonio Sepulveda
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense e membro do OLÉ
A laicidade é um dos pilares do Estado Moderno. O argumento laico está no cerne do pensamento iluminista, e, consequentemente, em todos os processos que caracterizaram as revoluções liberais que marcaram o final do século XVIII e início do século XIX. Da mesma forma, o conservadorismo moderno tem suas origens na mesma época, mais especificamente a partir da obra do autor britânico Edmund Burke e sua crítica ao iluminismo e às Revoluções Burguesas. Portanto, laicidade e conservadorismo são conceitos que possuem matrizes teóricas e políticas antagônicas, porém imbricadas.
Com efeito, os conteúdos da laicidade e do conservadorismo só podem ser entendidos em um longo processo histórico. Assim sendo, a laicização do Estado foi proclamada para retirar o monopólio da verdade da Igreja no processo de construção moderna da sociedade democrática. A laicidade torna-se um princípio da construção da democracia. Já o conservadorismo, nesse contexto, era um estilo de pensamento (MANNHEIN, 1959) que articulava as posições contrárias às mudanças impostos pelo Estado Moderno.
Dessa forma, enquanto discurso e prática, a laicidade estava ligada a ampla ideia de democratização. Já o conservadorismo, através de regimes de verdade (FOUCAULT, 1996), associava-se a ideias autoritárias e antidemocráticas. Por ser um estilo de pensamento, a compreensão do conservadorismo não é fácil. Segundo Bobbio (1992), Bonazzi (1992) e outros autores, o conservadorismo pode estar presente em qualquer teoria sendo capaz de endossar qualquer prática social conservadora. Afinal, o termo se refere a um conjunto de retóricas que inviabilizam e dificultam a mobilidade social. Isso caracteriza que o conservadorismo era o elemento que naturalizava as desigualdades sociais. Ou seja, qualquer proposta de igualdade social, ou de ruptura à ordem social natural, deveria ser combatida. Tal estilo de pensamento passou a minimizar a importância das classes sociais, defendendo a ideia de que havia uma desigualdade definida pela natureza humana; esse discurso endossava a visão religiosa de mundo, mais especificamente a cristã.
Nesse sentido, o conservadorismo era o elemento ideológico fundamental que construía senso comum. Portanto, não era exclusivo de nenhuma classe social. Na disputa por poder que ocorre no campo da cultura o conservadorismo é um importante elemento na construção dos interesses de classe e na própria consciência de classe, uma vez que funciona como um complicador do processo. Assim, não estão em disputa somente as condições materiais de sobrevivência, estão também as condições simbólicas, compostas por diversas argumentações de diferentes naturezas, o que torna o processo de conscientização de classe ainda mais lento.
Ao afirmarmos que classe e consciência de classe são sempre a última fase de um processo real, naturalmente não pensamos que isso seja tomado no sentido literal e mecânico (THOMPSON, 2012). Uma vez que se tem uma consciência de classe desenvolvida, as pessoas podem ser “socializadas” em um sentido classista, e as instituições de classe prolongam as condições para sua formação. Podem-se gerar tradições ou costumes de antagonismos de classe que não correspondam mais a um antagonismo de interesses. Mas tudo isso faz parte da complexidade que habitualmente encontramos na nossa análise histórica, especialmente a contemporânea. A questão é que não podemos falar de classes sem que as pessoas, diante de outros grupos, por meio de um processo de luta (o que compreende uma luta em nível cultural), entrem em relação e em oposição sob uma forma classista, ou ainda sem que modifiquem as relações de classe herdadas, já existentes (THOMPSON, 2012).
A compreensão do Thompson (2012) em romper com a tradição marxista ortodoxa, que coloca em oposição a base e a superestrutura, é fundamental para o argumento que defendo aqui. Não é possível entender o conservadorismo desvinculado dos interesses de classe, mas não é só isso. O conservadorismo é reproduzido como argumento de uma retórica que ultrapassa as questões de classe, encontrando as questões abstratas de sobrevivência que estão em disputa no campo da cultura, em especial nas diferentes demandas dos grupos minoritários: mulheres, lésbicas, gays, transgenerxs, negrxs, etc. Isso não quer dizer que a luta de classes desapareça. Ela simplesmente se torna mais complexa, com mais variantes, ocorrendo em diferentes espaços sociais.
Tendo como base a reflexão sobre o conservadorismo, pode-se entender que a laicidade é um elemento que se contrapõe ao conservadorismo. Uma vez que defende a liberdade religiosa, a laicidade do Estado deve ser garantida de forma que “todos possam conviver sem ter que manifestar essa dimensão da vida, fazendo-o apenas se quiser” (FISCHMANN, 2008, p. 13). Isso implica também que não ter uma religião também é um direito. Um Estado laico não se associa a nenhuma religião e também não presta privilégio. Portanto, não a financia com recursos públicos e nem estabelece convênios de qualquer ordem, pois tem a obrigação de assegurar a liberdade religiosa para todos os sujeitos, o que caracteriza a laicidade como pilar da democracia.
Em suma, a defesa da laicidade é fundamental para que tenhamos uma verdadeira sociedade democrática na luta contra todas as opressões conservadoras da sociedade contemporânea.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONAZZI, Tiziano. Verbete conservadorismo. In: BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: Editora UNB. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000.
FISCHMANN, Roseli. Estado laico. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2008.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
MANNHEIM, Karl. O pensamento conservador. Texto Original: MANNHEIM, Karl. Essays on Sociology and Social Psychology (cap. II: “Conservative Thought”). Routledge and Kegan Paul Ltd.: Londres, 1959, pp. 74-119. Tradução de Sylvia Lyra.
THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros ensaios. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.