FOLHA DE S. PAULO – 20/06/2010. Caderno Ilustríssima – p. 6 A FÉ BUSCA O PODER – Dois mil anos de religião e política Oscar Pilagallo A INTERSEÇÃO ENTRE AS ESFERAS DA FÉ E DO PODER, em desafio ao modelo predominante do Estado laico que ergueu um muro de sensatez entre religião e política, tem criado áreas de turbulência inimagináveis décadas atrás, quando se chegou a dar como certa a prevalência da racionalidade sobre o misticismo. Às vezes, essa sobreposição de secularismo e espiritualidade se dá apenas em retrospecto, através da lente de historiadores que procuram no passado paradigmas que reforcem suas opções ideológicas. É o caso de Karl Kautsky (1854-1938), socialista que, em “A Origem do Cristianismo” [Civilização Brasileira, trad. de Luiz Alberto Moniz Bandeira, 560 págs., R$ 69,90], busca nas primitivas comunidades judaicas um precursor do comunismo. O argumento é centrado na interpretação de que os essênios, povo a que pertenceu Jesus, praticavam o que ele denomina de comunismo de consumo, sistema que desconhecia o conceito de posse individual. Kautsky retrata um Jesus impregnado dessa noção coletivista, rebelde, pregador da insurreição da Palestina contra o domínio romano, crucificado como criminoso político. Esse rastilho inicial, porém, logo se apagaria, lamenta o autor, transformando o cristianismo numa seita submissa e servil que, três séculos mais tarde, seria incorporada como religião oficial pelos imperadores romanos. Amigo de Karl Marx (1818-83), de quem editou manuscritos sobre a teoria da mais valia, e companheiro de Vladimir Lênin (1870-1924) até romper com o líder da revolução bolchevique por sacrificar a democracia na implantação do socialismo na Rússia, Kautsky se interessa não pelo que vê como deformação posterior do cristianismo, mas sim pelo aspecto revolucionário que se perdeu com o tempo. O livro, escrito em 1908, é datado. No início do século 20, o autor queria demonstrar que a social-democracia não seria vítima das mesmas distorções do cristianismo oficial. Era uma previsão que, além de não se concretizar (os social-democratas também logo perderiam o caráter rebelde original), servia menos ao rigor histórico do que à propaganda política, ao buscar um paralelismo enviesado. A obra não abre espaço para milagres, espiritualidade, transcendência. Jesus “só pode ser historicamente compreendido e racionalmente explicado fora da fé”, afirma na introdução o tradutor Luiz Alberto Moniz Bandeira. São raros os governantes que, imbuídos de fervor religioso, exercem o poder com complacência em relação aos que não compartilham suas convicções. Um deles foi Constantino (280-337), o grande construtor do cristianismo retratado por Paul Veyne em “Quando Nosso Mundo se Tornou Cristão” [Civilização Brasileira, trad. de Marcos de Castro, 288 págs., R$ 37,90]. Ao contrário de Jesus, ele pode ser explicado “dentro da fé”. O poderoso imperador romano tem a biografia marcada por forte tempero místico. Na véspera de uma batalha decisiva em Roma, lhe é anunciado, em sonho, que a conversão ao cristianismo lhe garantirá a vitória. Criado no paganismo, passa a aceitar publicamente o Deus dos cristãos, esmaga o inimigo e faz uma entrada triunfal na cidade em 29 de outubro de 312, “a data-limite entre a Antiguidade pagã e a época cristã”. Não há como exagerar o papel de Constantino. Sem ele, diz Veyne, “o cristianismo teria permanecido uma seita de vanguarda”. Na época, a religião que se tornaria dominante em algumas gerações atraía, no máximo, 10% da população do Império Romano. O que teria levado Constantino a se converter? Historiadores munidos de instrumentos marxistas de análise creditam sua decisão a um cálculo político. Veyne admite que a explicação é tentadora: regimes políticos procuram a legitimação, que é frequentemente oferecida pela religião. Sendo o cristianismo monoteísta e universalista, maior a cobertura ideológica para o Império. Ou seja, ao se converter, Constantino teria buscado no cristianismo bases metafísicas para a unidade e a estabilidade de seu poder. A explicação pode ser tentadora, mas, para Veyne, não se sustenta. Ela revelaria a dificuldade de se aceitar que as crenças possam “formar um domínio particular da realidade humana”. Políticas religiosas, diz ele, nem sempre ocultam funções ideológicas. Especializado em Roma antiga, o historiador francês se recusa a entrar no mérito da “razão profunda” da decisão do imperador. Fala em “boa fé” e “convicção sincera e desinteressada”, mas não de maneira que tais palavras soem ingênuas, pois atribui ao imperador uma “piedade antropocêntrica”, em que o fiel deposita suas esperanças pessoais em Deus. Argumenta ainda que as vantagens da conversão embutem uma falsa questão. O povo o obedecia porque ele era um imperador, e não porque, numa terra de pagãos, acreditava num único Deus. Afinal, aquele “cérebro político não buscava aprovação e apoio de uma minoria cristã desprovida de influência, sem importância política e detestada pela maioria”. Constantino não impôs o cristianismo à sociedade, como tentariam fazer, séculos mais tarde, os promotores das Cruzadas e da Inquisição. Em seu tempo, desde que os cristãos deixaram de ser perseguidos, a religião era livre. O imperador, é verdade, não perdia oportunidade de exercer o proselitismo que é próprio dessa religião. Construía templos cristãos e concedia benefícios ao exercício da nova fé. O mundo aos poucos se cristianizou, mas não porque alguém fosse obrigado a rezar por sua cartilha. Veyne apresenta Constantino como um “profeta armado”, um “revolucionário” que protagonizou uma das maiores guinadas da humanidade, mas sobretudo como um moderado. Apesar da fé exacerbada dos convertidos, não era fanático. Se vivesse hoje, poderia ser descrito como tolerante, sobretudo em contraste com o atual fundamentalismo. Esse, sim, está na raiz da instabilidade política. O fundamentalismo, diz Karen Armstrong no livro “Em Nome de Deus” [Companhia das Letras, trad. de Hildegard Feist, 584 págs., R$ 29,50], relançado em edição de bolso, decorre de uma confusão entre os campos da racionalidade e da mitologia que não existia antes do século 18, quando a ciência passou a dar as respostas mais afiadas às dúvidas do homem. Ela trata do fundamentalismo islâmico (no Irã e no Egito), judeu (em Israel) e protestante (nos EUA). Ex-freira, ex-crítica ferrenha do catolicismo, estudiosa do islamismo, ela é uma das vozes mais ouvidas sobre o assunto. Embora o livro seja anterior ao 11 de Setembro, suas conclusões permanecem intactas. O fundamentalismo, afirma a autora, ao deixar de lado os ensinamentos da compaixão, cultiva uma “teologia de fúria, ressentimento e vingança”, e é por essa via que recoloca a fé na agenda internacional. Como chegamos a esse ponto? Armstrong explica: “Os fundamentalistas transformaram o ‘mythos’ de sua religião em ‘logos’, fosse insistindo na verdade científica de seus dogmas, fosse convertendo sua complexa mitologia numa compacta ideologia”. Apesar da lógica, o surgimento do fundamentalismo surpreendeu. A autora nota que “em meados do século 20 acreditava-se que o secularismo era uma tendência irreversível e que nunca mais a fé desempenharia papel importante nos acontecimentos mundiais”. Mais racionais, os homens restringiriam a religião ao âmbito privado. A partir dos anos 70, no entanto, os fundamentalistas se rebelaram, com sucesso, contra a hegemonia do secularismo. Armstrong não gosta do termo fundamentalismo, cunhado para designar, no início do século 20, os protestantes que se opunham às correntes mais liberais. Não gosta porque passou a ser usado para descrever outros comportamentos religiosos, cada qual com uma dinâmica própria. Ela usa a palavra consagrada com ressalvas porque, apesar das diferenças, os fundamentalistas têm algo em comum, como o desprezo pela democracia e pela liberdade de expressão e a intenção de ressacralizar um mundo cada vez mais cético. A razão, no entanto, não está de um só lado. Os movimentos dos fundamentalistas, conclui Armstrong, “com frequência se desenvolveram numa relação dialética com um secularismo agressivo que demonstrava pouco respeito pela religião e pelos devotos”. A combinação entre fé e poder talvez nunca tenha tido tamanho potencial explosivo. |
FOLHA DE S. PAULO – 20/06/2010. Caderno Ilustríssima – p. 6 A FÉ BUSCA O PODER – Dois mil anos de religião e política Oscar Pilagallo A INTERSEÇÃO ENTRE AS ESFERAS DA FÉ E DO PODER, em desafio ao modelo predominante do Estado laico que ergueu um muro de sensatez entre religião e política, tem criado áreas de turbulência inimagináveis décadas atrás, quando se chegou a dar como certa a prevalência da racionalidade sobre o misticismo. Às vezes, essa sobreposição de secularismo e espiritualidade se dá apenas em retrospecto, através da lente de historiadores que procuram no passado paradigmas que reforcem suas opções ideológicas. É o caso de Karl Kautsky (1854-1938), socialista que, em “A Origem do Cristianismo” [Civilização Brasileira, trad. de Luiz Alberto Moniz Bandeira, 560 págs., R$ 69,90], busca nas primitivas comunidades judaicas um precursor do comunismo. O argumento é centrado na interpretação de que os essênios, povo a que pertenceu Jesus, praticavam o que ele denomina de comunismo de consumo, sistema que desconhecia o conceito de posse individual. Kautsky retrata um Jesus impregnado dessa noção coletivista, rebelde, pregador da insurreição da Palestina contra o domínio romano, crucificado como criminoso político. Esse rastilho inicial, porém, logo se apagaria, lamenta o autor, transformando o cristianismo numa seita submissa e servil que, três séculos mais tarde, seria incorporada como religião oficial pelos imperadores romanos. Amigo de Karl Marx (1818-83), de quem editou manuscritos sobre a teoria da mais valia, e companheiro de Vladimir Lênin (1870-1924) até romper com o líder da revolução bolchevique por sacrificar a democracia na implantação do socialismo na Rússia, Kautsky se interessa não pelo que vê como deformação posterior do cristianismo, mas sim pelo aspecto revolucionário que se perdeu com o tempo. O livro, escrito em 1908, é datado. No início do século 20, o autor queria demonstrar que a social-democracia não seria vítima das mesmas distorções do cristianismo oficial. Era uma previsão que, além de não se concretizar (os social-democratas também logo perderiam o caráter rebelde original), servia menos ao rigor histórico do que à propaganda política, ao buscar um paralelismo enviesado. A obra não abre espaço para milagres, espiritualidade, transcendência. Jesus “só pode ser historicamente compreendido e racionalmente explicado fora da fé”, afirma na introdução o tradutor Luiz Alberto Moniz Bandeira. São raros os governantes que, imbuídos de fervor religioso, exercem o poder com complacência em relação aos que não compartilham suas convicções. Um deles foi Constantino (280-337), o grande construtor do cristianismo retratado por Paul Veyne em “Quando Nosso Mundo se Tornou Cristão” [Civilização Brasileira, trad. de Marcos de Castro, 288 págs., R$ 37,90]. Ao contrário de Jesus, ele pode ser explicado “dentro da fé”. O poderoso imperador romano tem a biografia marcada por forte tempero místico. Na véspera de uma batalha decisiva em Roma, lhe é anunciado, em sonho, que a conversão ao cristianismo lhe garantirá a vitória. Criado no paganismo, passa a aceitar publicamente o Deus dos cristãos, esmaga o inimigo e faz uma entrada triunfal na cidade em 29 de outubro de 312, “a data-limite entre a Antiguidade pagã e a época cristã”. Não há como exagerar o papel de Constantino. Sem ele, diz Veyne, “o cristianismo teria permanecido uma seita de vanguarda”. Na época, a religião que se tornaria dominante em algumas gerações atraía, no máximo, 10% da população do Império Romano. O que teria levado Constantino a se converter? Historiadores munidos de instrumentos marxistas de análise creditam sua decisão a um cálculo político. Veyne admite que a explicação é tentadora: regimes políticos procuram a legitimação, que é frequentemente oferecida pela religião. Sendo o cristianismo monoteísta e universalista, maior a cobertura ideológica para o Império. Ou seja, ao se converter, Constantino teria buscado no cristianismo bases metafísicas para a unidade e a estabilidade de seu poder. A explicação pode ser tentadora, mas, para Veyne, não se sustenta. Ela revelaria a dificuldade de se aceitar que as crenças possam “formar um domínio particular da realidade humana”. Políticas religiosas, diz ele, nem sempre ocultam funções ideológicas. Especializado em Roma antiga, o historiador francês se recusa a entrar no mérito da “razão profunda” da decisão do imperador. Fala em “boa fé” e “convicção sincera e desinteressada”, mas não de maneira que tais palavras soem ingênuas, pois atribui ao imperador uma “piedade antropocêntrica”, em que o fiel deposita suas esperanças pessoais em Deus. Argumenta ainda que as vantagens da conversão embutem uma falsa questão. O povo o obedecia porque ele era um imperador, e não porque, numa terra de pagãos, acreditava num único Deus. Afinal, aquele “cérebro político não buscava aprovação e apoio de uma minoria cristã desprovida de influência, sem importância política e detestada pela maioria”. Constantino não impôs o cristianismo à sociedade, como tentariam fazer, séculos mais tarde, os promotores das Cruzadas e da Inquisição. Em seu tempo, desde que os cristãos deixaram de ser perseguidos, a religião era livre. O imperador, é verdade, não perdia oportunidade de exercer o proselitismo que é próprio dessa religião. Construía templos cristãos e concedia benefícios ao exercício da nova fé. O mundo aos poucos se cristianizou, mas não porque alguém fosse obrigado a rezar por sua cartilha. Veyne apresenta Constantino como um “profeta armado”, um “revolucionário” que protagonizou uma das maiores guinadas da humanidade, mas sobretudo como um moderado. Apesar da fé exacerbada dos convertidos, não era fanático. Se vivesse hoje, poderia ser descrito como tolerante, sobretudo em contraste com o atual fundamentalismo. Esse, sim, está na raiz da instabilidade política. O fundamentalismo, diz Karen Armstrong no livro “Em Nome de Deus” [Companhia das Letras, trad. de Hildegard Feist, 584 págs., R$ 29,50], relançado em edição de bolso, decorre de uma confusão entre os campos da racionalidade e da mitologia que não existia antes do século 18, quando a ciência passou a dar as respostas mais afiadas às dúvidas do homem. Ela trata do fundamentalismo islâmico (no Irã e no Egito), judeu (em Israel) e protestante (nos EUA). Ex-freira, ex-crítica ferrenha do catolicismo, estudiosa do islamismo, ela é uma das vozes mais ouvidas sobre o assunto. Embora o livro seja anterior ao 11 de Setembro, suas conclusões permanecem intactas. O fundamentalismo, afirma a autora, ao deixar de lado os ensinamentos da compaixão, cultiva uma “teologia de fúria, ressentimento e vingança”, e é por essa via que recoloca a fé na agenda internacional. Como chegamos a esse ponto? Armstrong explica: “Os fundamentalistas transformaram o ‘mythos’ de sua religião em ‘logos’, fosse insistindo na verdade científica de seus dogmas, fosse convertendo sua complexa mitologia numa compacta ideologia”. Apesar da lógica, o surgimento do fundamentalismo surpreendeu. A autora nota que “em meados do século 20 acreditava-se que o secularismo era uma tendência irreversível e que nunca mais a fé desempenharia papel importante nos acontecimentos mundiais”. Mais racionais, os homens restringiriam a religião ao âmbito privado. A partir dos anos 70, no entanto, os fundamentalistas se rebelaram, com sucesso, contra a hegemonia do secularismo. Armstrong não gosta do termo fundamentalismo, cunhado para designar, no início do século 20, os protestantes que se opunham às correntes mais liberais. Não gosta porque passou a ser usado para descrever outros comportamentos religiosos, cada qual com uma dinâmica própria. Ela usa a palavra consagrada com ressalvas porque, apesar das diferenças, os fundamentalistas têm algo em comum, como o desprezo pela democracia e pela liberdade de expressão e a intenção de ressacralizar um mundo cada vez mais cético. A razão, no entanto, não está de um só lado. Os movimentos dos fundamentalistas, conclui Armstrong, “com frequência se desenvolveram numa relação dialética com um secularismo agressivo que demonstrava pouco respeito pela religião e pelos devotos”. A combinação entre fé e poder talvez nunca tenha tido tamanho potencial explosivo. |