José María Castillo*
“A condição necessária e indispensável para poder entender e viver o cristianismo é que ele possa ser vivido e praticado não no religioso e a partir do religioso, não no sagrado e a partir do sagrado, mas sim no profano e a partir do profano, no laico e a partir do laico”.
I. Introdução: A raiz do problema
Para começar, vamos diretamente ao fundo do problema. A meu ver, esse problema pode (e acredito que deve) ser proposto nestes termos: a condição necessária e indispensável para poder entender e viver o cristianismo é que ele possa ser vivido e praticado não no religioso e a partir do religioso, não no sagrado e a partir do sagrado, mas sim no profano e a partir do profano, no laico e a partir do laico.
Pois bem, hoje nos damos conta de que, neste momento, estamos em condições de afirmar que Jesus foi um homem profundamente religioso (pela sua constante relação com o Pai do céu e pela sua intensa vida de oração), mas ao mesmo tempo um laico, que viveu e apresentou a sua religiosidade entrando em conflito com a religião (com a Lei, com o Templo e com os Sacerdotes). E sabemos que esse conflito acabou sendo mortal, no sentido mais literal da palavra. Jesus, com efeito, foi perseguido, julgado, condenado
e assassinado pela Religião.
Portanto (.), nos são colocados dois problemas de grande porte, sobre os quais (creio) muitos cristãos não pensam: 1) a grande dificuldade que temos para entender Cristo e 2) a gravidade do problema religioso e cristão que estamos vivendo.
1. A nossa compreensão de Cristo
Se Jesus viveu como sabemos e morreu por aquilo que sabemos, temos o direito e o dever de nos perguntar como é possível, a partir da Religião, entender um homem (Jesus) que foi rejeitado e assassinado pela Religião. E, portanto, como podemos, a partir da nossa identificação com a Religião, viver e praticar um projeto e uma mensagem que foram rejeitadas tão brutalmente pela Religião.
Ao falar desse assunto, é importante ter em conta que, quando falamos da nossa identificação com a Religião, referimo-nos, acima de tudo, a um fato cultural e sociológico: nascemos e fomos educados em uma cultura religiosa e em uma sociedade marcada pela Religião. De forma que, sejamos ou não conscientes disso, estejamos ou não de acordo com isso, o fato religioso é um elemento constitutivo da nossa própria identidade. Inclusive no caso daquelas pessoas que se consideram agnósticas ou ateias. Porque essas pessoas também construíram sua própria identidade em uma cultura religiosa e em uma sociedade configurada (em boa parte) pela Religião.
2. O problema religioso-cristão que estamos vivendo
A Religião é representada e é gerida, na nossa sociedade, por uma instituição, que é a Igreja (.). Neste momento, o problema é que o cristianismo está saindo da Igreja. O cristianismo é vivido na sociedade laica, tolerante, plural, defensora dos direitos e da dignidade das pessoas. A religião continua na Igreja, na sua sacralidade, na sua dignidade, nos seus poderes e privilégios. Mas agora compreendemos, melhor do que nunca, que, a partir da religião, do poder da religião, da dignidade do sagrado, não é possível nem compreender nem viver o cristianismo, a mensagem de um homem (Jesus), que, insisto, foi perseguido pela religião, condenado pela religião, assassinado pela religião, no despojo de todo poder e de todo privilégio, no abandono e na exclusão de um subversivo que se viu rejeitado pelo Templo, pela Lei e pelos Sacerdotes.
II. O cristianismo “oficial” na sociedade atual
A mensagem e a vida de Jesus foram historicamente geridos e controlados pela Igreja. Isto é, a “memória subversiva” (J. B. Metz) de Jesus foi conservada por uma instituição (a Igreja) que, com o passar dos anos e por virtude de um lento processo, acabou se constituindo em: 1) uma Religião, 2) que é, de fato, a Religião do Ocidente.
A estas alturas da história, são muitos aqueles que vêem essa transformação como um processo de adulteração e inclusive de decomposição do projeto original, tal como nos são descritos pelos documentos fundacionais do Novo Testamento e pelo que sabemos com segurança que aconteceu nos séculos seguintes.
1. O cristianismo como Religião
Por aquilo que os evangelhos nos relatam, podemos afirmar com segurança que Jesus não pensou em fundar uma Igreja. Nem pensou em fundar uma nova Religião. Jesus foi um judeu que se deu conta de que a Religião, a partir do que ele viu e viveu no judaísmo do primeiro século, não era nem o que Deus queria, nem o que o mundo precisa. Aviso que, quando falo de “Religião”, não me refiro somente à Religião de Israel. Refiro-me à Religião tal como Jesus podia ver e viver no seu povo e no seu tempo. Isto é, refiro-me a uma Religião 1) monoteísta e, portanto, 2) excludente; 3) nacionalista; 4) centrada em três pilares fundamentais: a lei, o templo, os sacerdotes. Sem dúvida, Jesus se relacionou com o Pai do céu e falou sobre o Pai do céu.
Mas nunca falou de um Pai “excludente” das pessoas que tinham outras crenças ou que procediam de outras culturas.E nem de um Pai “nacionalista”, isto é, pensado para um povo, e no qual esse povo (e apenas esse povo) encontra “seu Deus”. E nem de um Pai ligado à observância da Lei, ao qual se encontra no Templo, e cujos mediadores são os funcionários do “sagrado”, os Sacerdotes, mediante seus cerimoniais, sacrifícios, ritos e observâncias. Nada disso aparece em alguma parte do Novo Testamento. E é bem curioso que coisas tão fundamentais para a mentalidade eclesiástica atual não sejam ditas, em nenhum momento, nos escritos ou documentos fundacionais do cristianismo. Pelo contrário, afirma-se insistentemente todo o contrário.
1) O Pai de Jesus não exclui os pecadores, os publicanos, os samaritanos, o centurião romano, a mulher siro-fenícia, os estrangeiros, os presos, os endemoninhados, os pagãos. Mais ainda, trata-se de um Pai que trata a todos igualmente, como fazem o sol e a chuva com os bons e os maus, assim como com os justos e os pecadores. Evidentemente, esse Deus não se encaixa no esquema de nenhum dos “deuses monoteístas” que, desde os distantes tempos em que ainda estava vigente o henoteísmo, justificaram e fomentaram, já não só a exclusão, mas principalmente a violência contra os deuses falsos e seus fiéis observantes.
2) O Pai de Jesus não tolera os nacionalistas fanáticos, como ficou evidente no episódio da visita de Jesus a Nazaré (Lc 4, 14-30). Aqui, ao ler a passagem de Isaías 61, 1-2, Jesus falou do Deus que liberta os prisioneiros e os oprimidos, mas suprimiu a alusão ao “dia da vingança do Senhor nosso Deus”, que se referia à vitória de Israel sobre os pagãos (Is 61, 3). E para que a questão ficasse inteiramente clara, Jesus, ao notar como todos se colocavam contra ele (Lc 4, 22), insistiu na sua postura, lembrando os casos de Elias e de Eliseu, quando ambos antepuseram a pessoas estrangeiras os necessitados israelitas. E sabemos que a reação dos nacionalistas foi tão forte que quiseram matar Jesus ali mesmo.
3) A religião de Jesus não se assenta nem tem sua consistência nos três pilares fundamentais de não poucas religiões, concretamente a religião que Jesus viveu em seu tempo.
a) A lei.
Jesus disse que não veio para aboli-la, mas para levá-la à sua “plenitude” (Mt 5, 17). Jesus propôs essa “plenitude” em duas direções opostas: uma linha de maior exigência e uma linha de maior libertação. Jesus impôs uma maior exigência da lei naquilo que se refere às relações humanas: não matar, mas também não insultar (Mt 5, 21-22); não cometer adultério, mas também não desejar o que é de outrem (Mt 5, 27-28; nada de desigualdade de direitos entre o homem e a mulher; Mt 5, 31-32; 19, 1-12 par); não jurar, mas também considerar suficiente a palavra humana (Mt 5, 33-37); não só rejeita a lei do talião, mas também propõe uma generosidade sem limites (Mt 5, 38-42); nada de ódio ao inimigo, mas também amor a todos sem distinção (Mt 5, 43-48). Em definitivo, para Jesus, a “plenitude” da lei é o amor (Mt 7, 12; cf. Rom 13, 10).
Pelo contrário, na linha de maior libertação, Jesus violou insistentemente as normas religiosas relativas à observância do sábado (Mc 2, 23-27; 3, 1-6 par), ao jejum (Mc 2, 18-22 par), às purificações rituais (Mc 7, 1-7), às proibições alimentares (Mc 7, 14-19).
b) O templo.
Com base no que os evangelhos relatam, Jesus jamais foi ao templo para participar das cerimônias sagradas, nos sacrifícios ou no culto ritual estabelecido. Quando se fala de Jesus no templo é para falar às pessoas, já que aquele era o lugar das maiores concentrações humanas em Israel. Por outro lado, sabemos que Jesus disse à samaritana que havia chegado a hora em que os verdadeiros adoradores não adorariam Deus em templo algum, mas sim “em espírito e verdade” (Jo 4, 21-24). Mas, sobretudo, o aspecto mais forte na vida de Jesus foi sua ação violenta contra o templo, ao qual qualificou como um “covil de ladrões” (Mt 21, 13 par), um fato escandaloso e que foi
determinante para a condenação à morte, no julgamento religioso (Mt 26, 61 par), e que foi o que jogaram na cara de Jesus nos deboches diante da cruz (Mt 27, 40 par). Além disso, Jesus havia anunciado a total e definitiva destruição e ruína do templo (Mt 24, 1-2 par). Definitivamente, o Deus de Jesus não está no templo, mas sim nas relações humanas e, sobretudo, no comportamento de cada um com aqueles que sofrem (Mt 25, 31-46).
c) Os sacerdotes.
A relação de Jesus com eles, pelos dados que os evangelhos nos dão, foi mais do que distante: foi de claro e duríssimo enfrentamento. Com os “simples sacerdotes”, como sabemos pela palavra do bom samaritano (Lc 10, 31), e principalmente com os “sumos sacerdotes”, que, quando aparecem nos evangelhos e no livro dos Atos, nunca são apresentados como representantes de Deus, mas sempre como agentes de sofrimento e de morte (Mc 8, 31 par; 10, 33 par), especialmente na condenação à morte (Jo 11, 47- 53) e no relato da paixão.
Conclusão: definitivamente, a religiosidade de Jesus não se limita nem se identifica com o “sagrado”. Pelo contrário, é no “laico” em que ela tem sua presença e em que se realiza, naquilo que é comum a todos os seres humanos, de forma que a religiosidade que Jesus nos ensinou é a religiosidade que não exclui ninguém, nem se enfrenta com ninguém, mas que é vivida como Jesus a viveu, na relação com o Pai, na oração que se faz na solidão do escondido e colocando a insistência maior nas melhores relações humanas que podemos ter com os demais.
2. O cristianismo como Religião do Ocidente
Por razões históricas que todos conhecemos, o cristianismo não se expandiu para a Ásia, mas se inseriu nas culturas mediterrânicas, colocando seu centro no centro do Império, em Roma. Assim, paulatinamente, as comunidades cristãs foram se configurando como grupos humanos que viviam simultaneamente da tradição do Evangelho e, ao mesmo tempo, da cultura do Ocidente. A conseqüência, inevitável e
lógica, foi que o cristianismo que chegou a nós não é só a “recordação” de Jesus e “a forma de vida que Jesus nos trouxe”, mas também a herança de uma cultura: a cultura greco-romana que configurou o Império.
Como se sabe, no dia 28 de fevereiro de 380, os imperadores Graciano, Valentiniano II e Teodósio I formularam seu projeto: “Desejamos que todos os povos que são governados pela moderação da nossa clemência se mantenham na religião que o santo apóstolo Pedro transmitiu aos romanos” (Cth XVI, 1, 2). A partir de então, a “religiosidade de Jesus” e a “mensagem de Jesus” ficaram oficialmente deformadas. O Evangelho começou a ser assim a fusão da mensagem de Jesus com os dois grandes legados que a cultura greco-romana nos deixou: a filosofia helenista e o direito romano.
De forma que a Igreja que chegou até nós é fruto, sem dúvida, do Evangelho. Mas, também é o resultado de uma teologia profundamente marcada pelo pensamento helenista e por um código legal marcado pelo direito romano. As consequências, que se seguiram de tudo isso, não são fáceis de analisar. Em todo o caso, devo chamar a atenção sobre dois fatos que me parecem de especial relevância para a Igreja e para a vida cristã:
1) Um pensamento determinado mais pela metafísica do que pela história, isto é, mais preocupado com o “ser” do que com o “acontecer” (B. Welte). Por isso, a Igreja e sua teologia se interessam mais, por exemplo, em saber quem é Deus ou Jesus, do que ter presente o que acontece quando Deus está presente ou quando Jesus é quem conduz a nossa vida. Isso teve uma influência de enormes consequências, por exemplo, no dogma cristológico. E, antes que isso, no próprio “Credo” da Igreja.
2) Um direito eclesiástico em que o direito romano deixou sua marca em assuntos de enorme importância, por exemplo a ideia e a práxis do poder e da autoridade. Uma ideia que, tal como é entendida e colocada em prática na Igreja, não se fundamenta no Evangelho, mas sim no direito romano.
A conclusão de tudo o que se disse é clara: o cristianismo “oficial” e a Igreja institucional representam um fato global inadaptado na sociedade e na cultura atual. Aqui, seria bom lembrar que a religião que teve uma duração mais longa, na história da civilização, é a primeira das religiões que conhecemos, a religião da Mesopotâmia. Pois bem, Jean Bottéro disse, referindo-se a essa antiquísima religião, que seus devotos a edificaram “através de numerosas etapas, pouco a pouco, em perfeita coerência com sua própria maneira de ser, de viver, de ver e de pensar”. Pois bem, é precisamente isso o que o nosso cristianismo “oficial” e a nossa Igreja não têm. O cristianismo que as pessoas veem e a Igreja que as pessoas veem não estão edificados em perfeita coerência nem com a maneira de pensar, nem com a forma de viver da grande maioria das pessoas do nosso tempo. Por isso, a partir de não poucos pontos de vista, a Igreja e sua mensagem não interessam. E, o que é pior, frequentemente provocam rejeição.
III. Cristianismo, laicidade e pluralismo
Como já disse na seção anterior, o Evangelho é o grande relato de um conflito. Sem dúvida, o Evangelho nos fala de Deus, nos fala de Cristo, nos fala da Religião e das exigências éticas que tudo isso envolve. Mas nos fala dessas coisas de forma que isso logo desencadeou um enfrentamento, que foi se agravando até acabar em um conflito mortal. E – dando um passo mais – esse conflito foi concretamente o conflito entre Jesus e a Religião. Isso é o que os quatro evangelhos mais destacam.
Sabemos, sem dúvida, que a morte violenta de Jesus foi condicionada por motivos políticos, como consta no título que puseram sobre a cruz; e pelo fato de que só o procurador romano era quem podia ditar a pena de morte na cruz. Mas, em todo o caso, está fora de dúvida que a decisão de matar Jesus e a pressão que se fez para que morresse crucificado, tudo isso proveio dos dirigentes religiosos, que chegaram à convicção de que o que Jesus transmitia e o que eles representavam eram duas coisas incompatíveis. O relato de Jo 11, 47-53 tem, nesse sentido, um valor histórico decisivo. Porque descreve o momento em que se viu com toda a clareza que era necessária e urgente tomar uma decisão: ou pelo projeto de Jesus ou pelo projeto dos sacerdotes. Isto é, o que ali se propôs com toda crueza foi este dilema: ou o Evangelho ou a Religião. Mas, antes de seguir em frente, convém fazer duas advertências:
1) Não se deve dar a este enfrentamento uma interpretação moralizante, no sentido de explicá-lo pela maldade dos dirigentes religiosos que a bondade de Jesus enfrentou. Analisando as causas do conflito, adverte-se que muitos dos dirigentes religiosos devia ser, sem dúvida, homens de boa vontade. Mas o que Jesus rejeitou não foi a má vontade, mas sim fatos que levam alguém a proceder mal e, além disso, a ter argumentos para justificar seu mau proceder. Algo que costuma ocorrer com frequência em não poucos ambientes religiosos.
2) Não se deve dar a esse enfrentamento uma interpretação antijudaizante, no sentido de que possa haver motivos para pensar que o Evangelho é o enfrentamento de Jesus com o judaísmo.
A Igreja, sua teologia e sua liturgia deram essa “interpretação antissemita” ao conflito e à morte de Jesus. Mas digamos abertamente que essa interpretação nasceu de uma conveniência: convinha (e convém) à Igreja jogar a responsabilidade sobre os judeus porque a Igreja não estava (nem está) disposta a aceitar que ela é que converteu o Evangelho em Religião. Convém mais à Igreja a Religião do que o Evangelho. Porque o Evangelho é uma “memória perigosa”, enquanto que a Religião é uma “prática privilegiada”. Dito mais claramente: o Evangelho leva a Igreja a situações conflitivas, como aconteceu com Jesus, enquanto que a Religião situa seus dirigentes em posições
de privilégio, de poder, de dignidade e de segurança.
Para compreender o significado e o alcance desse enfrentamento e dessa incompatibilidade entre o Evangelho e a Religião, é inteiramente necessário analisar, ao menos sumariamente, duas coisas: 1) O que a Religião representa como conjunto de mediações por meio das quais o ser humano pretende se relacionar com Deus. 2) Como o cristianismo entende e se representa a Deus.
1. As mediações da Religião
Aqui falamos concretamente de três coisas que são fundamentais na compreensão e na prática da Religião:
1) A Lei: para o “homem religioso”, a Lei divina é a vontade de Deus, mais ainda, é a revelação mostrada por Deus a seus fiéis. Em Israel, é fundamentalmente a Torá, que consiste basicamente no Pentateuco. Em outras tradições religiosas, como é o caso do Islã, a Lei está contida no Corão, um texto intocável, que não admite interpretação nenhuma. A partir desses pressupostos, a Lei se absolutiza. Isto é, se constitui em absoluto, que se antepõe a qualquer outra coisa: da mesma maneira que Deus está sempre e necessariamente acima do homem, o divino acima do humano, assim também as obrigações que a Torá impõe estão sempre acima das necessidades que brotam da condição humana.
A consequência inevitável dessa exposição é que o humano sempre fica assim sujeitado ao divino. Até o extremo de que, se for preciso, para assegurar a supremacia do divino sobre o humano, pode-se chegar a causar sofrimento, marginalização, exclusão e até morte, com tal de garantir a superioridade do divino sobre o humano.
Dessa forma, o conflito de Deus com o homem está assegurado. E também, como é lógico, a violência da Religião, que se converte assim em motivo determinante de conflitos, divisões, enfrentamentos, guerras e morte.
2) O Templo: seja entendido como hieros (sagrado) ou como naos (santuário, o lugar onde a divindade habita), sempre supõe o espaço sagrado, que se contrapõe ao espaço profano. Assim, a realidade fica dividida, partida e separada. De um lado, o lugar ou espaço “onde Deus está” e, portanto, “onde se encontra Deus”. É, pois, o lugar do respeito, a reverência, a dignidade, o privilégio. E, de outro lado, o espaço profano, laico, não religioso, onde as pessoas vivem e convivem, trabalham, desfrutam e sofrem, se cansam e descansam, se querem e se odeiam, produzem etc. Se o Templo é o lugar de Deus, a rua, a casa, o campo, a cidade são o lugar da vida. A consequência, que segue a partir do que foi dito, é dupla: a) acima de tudo, o Templo, ao ser um lugar privilegiado, santo, onde Deus mesmo está presente, por isso mesmo pode se converter (como ocorreu com o Templo de Jerusalém) em um “covil de ladrões”; b) por outro lado, ao ser o espaço próprio do Altíssimo, precisa de uma estrutura e até de uma arquitetura que diferencia o Templo (onde Deus habita) da casa (onde o homem habita). Daí a grandiosidade, a solenidade, a pompa e o luxo que costumam distinguir tantos templos (catedrais…).
Das humildes vivendas da maior parte dos simples cidadãos. O que entranha duas consequências: 1ª) os templos são lugar de encontro com Deus, de prática religiosa, de respeito e observância, enquanto o espaço profano é lugar de encontro com os demais seres humanos, do que resulta que o encontro com Deus e o encontro com os seres humanos ficam separados, situados em âmbitos distintos e, frequentemente, não tem a ver um com o outro. 2ª) Os templos oferecem uma representação de Deus de grandeza, de majestade, de poder, de solenidade…, que pouco tem a ver com o que a maioria dos mortais são e vivem. Os templos afastaram Deus dos seres humanos. E representaram Deus de forma pouco menos do que inacessível para os simples cidadãos.
3) Os Sacerdotes: da mesma forma que o Templo é o “espaço sagrado”, os sacerdotes são os “homens consagrados”. Portanto, homens “postos à parte”, isto é, “separados”. E, portanto, homens privilegiados. Homens, portanto, dotados de um poder e de uma dignidade que não está ao alcance dos demais. Assim, os fiéis cristãos ficam – assim como acontece com o espaço – divididos em dois blocos: os “ordenados”, de um lado, a “plebe”, de outro. E, portanto, os clérigos e os leigos. Por isso, e como é lógico, a Religião, ao dividir os cidadãos em duas classes ou grupos, diferenciados de forma “essencial” e não meramente “gradual” (“essentia et non gradu”) (Conc. Vat. II. LG 10,2), por isso mesmo a presença da Religião na sociedade se vê inquietada por dificuldades. Porque, a partir dessas divisões, diferenças e privilégios de ordem religiosa, costuma-se fazer-se presente a tentação e a pretensão de exigir, para os clérigos, poderes e privilégios que não estão ao alcance dos leigos. E bem sabemos que, enquanto em uma sociedade se introduz essa divisão de cidadãos, a conflitividade está servida.
2. O Deus do Evangelho
O cristianismo, desde o primeiro momento (antes que os seguidores de Jesus fossem chamados de “cristãos”: Atos 11, 26), teve o atrevimento de proclamar sua fé em um “Deus crucificado”. Como é lógico, em uma cultura em que a morte na cruz era o “servile supplicium”, do qual Tácito fala (Hit. 4, 11), o tormento que arrancava a honra e a dignidade do “cidadão romano”, como explica Cícero em sua diatribe contra Verres (In Verrem, II, 5, 64), porque era a forma mais degradante de acabar com escravos, estrangeiros e subversivos contra o Império, evidentemente unir a palavra “Deus” com a morte, e com a morte na “cruz”, representava uma loucura e uma chacota. Por isso, não tem nada de estranho que a primeira imagem de um crucifixo da qual se teve notícia é do ano 200 (d. C.).
E é uma imagem blasfema. Porque se trata de um desenho com graffiti, que foi encontrado (em 1856) em uma das dependências dos serviçais imperiais no Palatino de Roma. O tosco esboço ali pintado representa um homem crucificado e com cabeça de burro. Abaixo, escreveram: “Alesamenos sébete theom”: “Alexandro adora Deus”. Porque, no tempo do Império, um “Deus crucificado” era um escárnio tão
inapresentável que só podia ser representada como a adoração de um asno. Isso era como afirmar a inversão total da Religião.
Pois bem, estando as coisas dessa forma e em uma cultura que podia unir dessa forma Deus com a cruz, compreende-se por que São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios, explica Jesus Cristo crucificado falando da “loucura (‘morós’) de Deus” e da “fraqueza (‘asthenés’) de Deus” (1 Cor 1, 25), evidentemente não é o Deus “todopoderoso” (“pantokrátor”) que confessamos no Credo, segundo a conhecida fórmula do Concílio de Niceia (DH 125). Um Deus “fraco” e “louco” não tem lugar em nosso sistema cultural, nem em nossa escala de valores, nem no mais elementar das nossas convicções religiosas.
Pela simples razão de que falar dessa maneira de Deus, a partir dos critérios que formam uma Religião, seja a quer for, é não só a maior falta de respeito em que podemos incorrer, mas também algo muito mais radical: isso equivale a negar a Deus e a zombar da Religião.
Por isso, seguramente, a maior dificuldade que os cristãos têm para entender o cristianismo é precisamente a Religião. Disse isso antes. E devo insistir agora nisso. Nós estamos familiarizados com a imagem de Cristo crucificado. E mais, não só estamos familiarizados com essa imagem. O problema é que, além de familiaridade diante de Jesus crucificado, mobilizam-se em nós os sentimentos mais nobres e mais profundos: respeito, admiração, devoção, piedade, generosidade, esperança.
E tudo isso, sem dúvida, é perfeitamente compreensível. Mas é compreensível porque sempre nos disseram que um crucifixo é uma “imagem religiosa”, quando, na realidade, Jesus suspenso em uma cruz, fora das portas da “cidade santa”, foi historicamente algo que não tinha a ver absolutamente nada com a Religião. Pior ainda, se os sumos sacerdotes tiveram tanto empenho, pois não bastava matá-lo, mas também era necessários crucificá-lo (Jo 19, 6. 15-16; Mt 27, 22-26 par), isso aconteceu assim, porque os sacerdotes viram que a rejeição mais radical que a Religião podia fazer ao Evangelho se realizava precisamente suspendendo Jesus em uma cruz. Não entendemos a cruz porque não entendemos o Evangelho. O que, em último termo significa que, na realidade, o que não entendemos é o Deus do Evangelho, o Pai de Jesus.
Mas ainda resta o mais importante a ser dito. No conhecido hino da Carta aos Filipenses, São Paulo diz que Jesus, “apesar de sua condição divina, não se apegou à sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se semelhante aos homens” (Fil 2, 6-7). Paulo utiliza aqui a palavra grega “kenos”, que significa “vazio”, já que o verbo “kenoô” significa “esvaziar”. Paulo afirma, portanto, que o Deus dos cristãos é um “Deus kenótico”, um Deus “esvaziado de Si mesmo”. Tenhamos em conta que, em Jesus, quem se despoja de seu cargo e se esvazia de si mesmo é Deus. Isso não quer dizer, não pode dizer, que Deus, durante a
vida terrena de Jesus, deixou de ser Deus. O que Paulo quer dizer é que a “morphé Theoú” mudou para “morphé douloú” (Fil 2, 6-7). A palavra grega “morphé” significa “forma” ou “manifestação visível” (W. Pölmann). Portanto, Paulo nos diz que o Deus que nos é dado a conhecer em Jesus só se faz presente na “forma de escravo”.
O que nos leva direta e inevitavelmente à seguinte conclusão: Deus renunciou a toda grandeza, a toda majestade, a toda expressão de poder. Porque um escravo é a negação total de tudo o que é grandeza, majestade ou poder. E advirto que aqui é decisivo compreender que a exaltação da qual Paulo fala, no final do hino (Fil 2, 9-11), não é a anulação da “kenosis”, para que tudo fique como estava antes da existência
terrena de Jesus. É a afirmação de que a presença de Deus, “na forma de escravo”, essa é a forma definitiva que Deus assumiu, sem voltar atrás. Porque a forma humilhada que não pode pretender impôr a ninguém, essa é a forma de presença divina que Deus exaltou para sempre. O Deus kenótico que nos foi dado a conhecer no Cristo kenótico vem nos dizer que só encontramos Deus no kenótico: na forma de vida daquele que se esvazia de toda pretensão de grandeza, de majestade ou de poder e dominação.
Conclusão: tudo isso não é masoquismo, é humanidade. O kenótico é o simplesmente humano. Aquilo em que todos os seres humanos coincidem, naquilo que todos os humanos se igualam, o que é comum a todos, isto é, o laico. De onde resulta que a conclusão à qual chegamos é que encontramos o Deus de Jesus, o Deus do cristianismo, acima de tudo e sobretudo, na laicidade: na sociedade laica, no Estado laico, nas instituições laicas. Porque esse modelo de sociedade, esse modelo de Estado, esse modelo de instituições não nos separam, não nos dividem, nem nos enfrentam, mas fazem com que todos coincidam na mesma dignidade, nos mesmos direitos, na mesma categoria.
A categoria que saiu das mãos de Deus, a categoria humana. E não as “outras categorias”, que já não vem de Deus, mas que os homens inventaram: as categorias culturais, as categorias religiosas, as categorias sociais, as categorias políticas e todas as malditas categorias que tiramos da manga para nos impormos uns sobre os outros ou, o que é mais grave, para enfrentarmo-nos uns contra os outros.
Ao chegar a esse ponto, é inevitável fazer uma referência à forma visível e à imagem externa, a partir da qual a Igreja e seus dirigentes pretendem “representar” o Deus de Jesus. É evidente que, se levamos a sério a teologia dos evangelhos e de Paulo, o Deus kenótico não pode ser apresentado e representado a partir da pompa, do luxo, da grandiosidade e do poder a partir dos quais o clero pretende “representar” e “fazer presente” Deus de Jesus no mundo. Não estamos falando de uma questão marginal. Ao dizer essas coisas, estamos tocando no fundo.
IV. Como viver esse cristianismo
Aqui me limito a fazer algumas propostas conclusivas. Dentre outras, me parece que se possam apresentar as seguintes:
1. Promover e fomentar, como as atitudes mais básicas e mais fundamentais na vida, o respeito e a tolerância. Respeito e tolerância com todos, sejam da origem que forem, da cor que forem e tenham a mentalidade, a nacionalidade, as crenças, os costumes ou a forma de vida que tiverem. Respeito é deixar viver. Deixar que cada um seja o que é, e que seja como é. Sem nunca jogar nada na cara. Sem passar recibos pelos serviços prestados.
Tendo só o orgulho de que os demais sejam como são. E lutando, em todo caso, contra o fanatismo, cuja essência consiste, como se disse muito bem, “no desejo de obrigar os demais a mudar” (Samuel Oz). Não esqueçamos que “fanatismo” e “fanático” são termos que procedem do latim “fanum”, que, na religião romana antiga, era o “lugar sagrado”. Por isso se compreende que “pro-fano” é o que está fora do “fanum”, isto é, à margem do “sagrado”. Assim, a etimologia nos ensina que a intolerância e o fanatismo têm sua explicação última na Religião. Uma pessoa religiosa ou que “sacraliza” suas ideias, suas convicções, seus interesses, eis aí uma pessoa intolerante, fanática, que durante toda a vida irá faltar com o respeito a todo aquele que não se submete a suas ideias e a seus interesses.
Isto nos coloca na pista para descobrir a urgente necessidade que temos de trabalhar por uma sociedade laica e uma convivência laica. Mas, sobretudo, isso nos faz nos dar conta de que, afetivamente, somente no laico e a partir do laico é possível viver o cristianismo. Dietrich Bonhoeffer tinha razão quando, nos anos da Segunda Guerra Mundial, se perguntava: “Como é possível que Cristo possa ter se feito Senhor dos irreligiosos? Há realmente cristãos sem religião? O que é um cristianismo irreligioso?”. E o próprio Bonhoeffer se respondia com esta afirmação tão profunda, quando desconcertante: “O pecado do homem não está em sua queda no real, mas sim em sua fuga do ideal”.
2. A espiritualidade dos direitos humanos. Ao dizer isso, não nego a vigência e a importância das espiritualidades tradicionais. O que digo é que não poucas das correntes de espiritualidade tradicional já não são suficientes para responder às demandas dos tempos em que vivemos. Estamos de acordo em que estamos atravessando, em não poucos ambientes, um longo deserto de espiritualidade. Necessitamos, sem dúvida, revitalizar as espiritualidades clássicas. Contanto que as purifiquemos do lastro de ideais helenistas, puritanos ou tremendistas que não poucas práticas espirituais arrastam. Mas, sobretudo, necessitamos ter em conta e integrar em nossas vidas esse projeto fundamental: a Declaração dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, é o projeto de espiritualidade mais urgente e mais exigente que podemos assumir neste momento.
Isso quer dizer que a espiritualidade cristã se baseia no projeto fundamental que consiste em fomentar e exigir, antes que os deveres, os direitos das pessoas. As religiões inculcaram sempre os deveres e obrigações que é preciso observar. E não insistiram apenas nos direitos cívicos e de convivência. Pois bem, como acertadamente J. Feinberg fez notar, um sistema moral ou espiritual baseado mais na imposição de deveres do que na defesa de direitos desemboca em um sistema “moralmente empobrecido”, já que nele as pessoas não podem sustentar as demandas que um sistema de direitos torna possíveis.
Em um sistema de deveres, as pessoas desenvolvem um caráter mais servil, um espírito de submissão, de resistência e de mutismo, que é capaz de tolerar, com boa consciência, as maiores atrocidades e agressões. Pelo contrário, as pessoas que gozam de direitos e são conscientes deles, são menos inclinadas a desenvolver caráteres de servilismo, os caráteres das pobres gentes que se veem forçadas a assegurar suas necessidades implorando ou suplicando “favores” do amo, do patrão, do superior ou do hierarca que os governa. Disso, segue-se uma consequência inteiramente básica: o respeito à pessoa é equivalente ao respeito a seus direitos (J. Feinberg; J. Raz). As religiões falam com frequência e insistência no ideal do amor e da caridade. Mas como se pode falar seriamente de amor onde não se respeitam os direitos fundamentais das pessoas às quais dizemos que amamos? Só quando aceitarmos e colocarmos em prática o respeito à igualdade e dignidade de todos os seres humanos igualmente, só então poderemos começar a falar de amor. Tudo o que não for isso é palavraria vazia e mentira pura e dura.
3. Mostrar e explicar nosso desacordo com os privilégios que a Igreja Católica desfruta na Espanha. Mais ainda, não se trata só de um desacordo, mas principalmente de um protesto. Porque pensamos que os Acordos Igreja-Estado de 1979 não podem se adequar com os postulados básicos da vigente Constituição Espanhola. O fato sociológico da maioria dos cidadãos que, por motivos históricos, se reconhecem como católicos, não justifica a menção que se faz da Igreja Católica no artigo 16, 3 da Constituição.
A experiência dos últimos 40 anos nos ensina que essa menção foi utilizada para justificar os privilégios legais, econômicos, docentes… dos quais a Igreja goza no nosso Estado aconfessional. E a própria experiência nos diz que esses privilégios são motivos de constantes problemas e conflitos, que dificultam a convivência cidadã e, de fato, dividem e até, em alguns casos, enfrentam os espanhóis. Mas, além desses aspectos legais (que são inteiramente básicos), é evidente que não podemos estar de acordo com a doutrina da “laicidade sadia” que o Papa Bento XVI defendeu desde o começo do seu pontificado e que formulou com toda clareza em seu primeiro discurso diante do
presidente da República Italiana, no dia 24 de junho de 2005.
O pensamento do Pontífice se baseia no critério segundo o qual os princípios éticos “encontram seu fundamento último na religião” Porque “a autonomia da esfera temporal não exclui uma íntima harmonia com as exigências superiores e complexas que derivam de uma visão integral do homem e de seu destino eterno” (L’Osservatore Romano, 25.VI.05, p.5). Como é lógico – e dado que “os princípios éticos” abrangem a vida inteira -, o Papa afirma que toda a vida (pública e privada) tem, além dos deveres cívicos, um dever de referência (submissão?) à religião. O que, em última instância, equivale a defender que o cidadão tem que se submeter, além do Estado, à Igreja. O que equivale a reconhecer que, acima dos poderes do Estado, estão os poderes da Igreja.
*Teólogo espanhol e ex-professor da Faculdade de Teologia de Granada, na Espanha, além de exprofessor convidado da Universidade Pontifícia Gregoriana, em Roma, da Universidade Pontifícia de Comillas, em Madri, e da Universidade Centro-Americana “José Simeón Cañas”, no El Salvador. O artigo foi publicado na revista Adista, nº 38, 08-05-2010. O texto é tradução de Moisés Sbardelotto.
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Capturado em 13/08/2010. Fonte: Católicas pelo Direito de Decidir (www.catolicasonline.org.br)