LAICIDADE DO ESTADO BRASILEIRO

Postado por em 03/jun/2019 - Sem Comentários

ZYLBERSZTAJN, Joana. A laicidade do Estado Brasileiro, Brasília: Verbena Editora, 2016.

O Estado brasileiro é laico ou confessional? Esta pergunta está sempre presente nas indagações que muitos de nós fazemos quando nos deparamos com situações concretas, cada vez mais explícitas, de privilegiamento de instituições religiosas mediante recursos financeiros, transferências de patrimônio, concessões de canais de TV – e a lista segue longa.

Em sua tese de doutorado em Direito defendida na USP, Joana Zylbersztajn apresenta uma resposta positiva: o Estado brasileiro é laico. Apesar de tal expressão não fazer parte da Constituição de 1988 – sua referência e objeto principais – ela sustenta que esse princípio está presente de modo implícito na Carta Magna. Em apoio a sua tese, ela realiza detalhada análise do conjunto do texto constitucional, especialmente nas declarações de liberdade de crença, igualdade e democracia. Não se trata de algo absoluto, de eficácia plena, mas, sim, de um “mandato de otimização”, que deve ser realizado o máximo possível nas situações concretas. Sem embargo, há interdições constitucionais de caráter absoluto, como a proibição de o Estado estabelecer cultos religiosos ou igrejas. Por outro lado, há a permissão para a colaboração entre o Estado e instituições religiosas em casos de “interesse público”.

A autora explora de modo convincente as colisões entre o princípio da liberdade religiosa, expressamente garantida pela Constituição, e a imparcialidade do Estado diante das instituições religiosas, também expressa no Art. 19, inciso I. Tais colisões se evidenciam no favorecimento das religiões majoritárias, as dominantes, para o que se evoca o princípio da liberdade religiosa; mas, para conter as religiões minoritárias, as dominadas, evoca-se o princípio da laicidade do Estado.

Para desenvolver sua argumentação a respeito da laicidade como um “mandato de otimização”, a autora percorreu seis dimensões práticas de concretização da laicidade (símbolos e referências religiosas em espaços públicos, feriados religiosos e dias de guarda, radiodifusão, financiamento público, patrimônio público e direitos LGBT, sexuais e reprodutivos), bem como quatro questões constitucionais (ensino religioso nas escolas públicas, efeitos civis do casamento religioso, assistência religiosa e capelanias militares, imunidade tributárias para instituições religiosas e a concordata com a Sé de Roma). Em cada uma dessas situações, ela explorou as questões em disputa, com preferência óbvia para as que culminaram em ações jurídicas.

Dentre todo esse amplo leque, destaco duas, uma que acolho, outra que contesto.

Aprendi muito com a autora em sua argumentação a respeito da evocação divina no preâmbulo da Constituição de 1988, como, aliás, houve nas de 1934, 1946 e 1967. Ela contestou a opinião de muitos, de que tal evocação é inócua, já que o preâmbulo constitucional não tem efeito normativo. Ela comprovou que essa evocação tem uma eficácia simbólica importante, o que fez mediante citações de várias sentenças judiciais e justificações de projetos de lei que apóiam a presença religiosa na esfera pública, justamente com base naquele preâmbulo.

Mas, no que diz respeito ao ensino religioso nas escolas, encontrei um problema que destoa da linha da tese. A autora diz seguir Roseli Fischmann nesse tópico, em quem encontra apoio para afirmar que a oferta de ensino religioso nas escolas públicas acaba por abrir espaço para ações abusivas (p.224). Todavia, encontrei dissonâncias importantes, para as quais vale a pena chamar a atenção.

Ao contrário de Fischmann, Zylbersztajn mostrou aceitar a legitimidade do ensino religioso não confessional, nos termos que ela entendeu ver na legislação federal. O financiamento estatal para essa disciplina foi considerado por ela “relevante para a garantia de igualdade entre as diversas confissões” (p. 111), sem, contudo, explicar como tal igualdade possa existir num presumido ensino religioso não confessional. Nas conclusões, a autora mudou a direção da argumentação. Ao invés de mirar o ensino público, como fez implicatamente no início da capítulo 4, ela sugeriu que a distribuição, pelo Estado, de bolsas de estudo em escolas privadas confessionais a famílias que preferirem educação religiosa para seus filhos possa ser um mecanismo que atenda, ao mesmo tempo, ao princípio da laicidade do Estado e da liberdade religiosa. (p. 224)

Aí está um exemplo da contribuição valiosa que a História pode dar a uma tese em Direito. A longa e conflituosa discussão com vistas à primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, entre 1948 e 1961, teve como pivô justamente a “liberdade de ensino”, defendida pelos privatistas capitaneados pela Igreja Católica: o direito dos pais de escolherem o tipo de educação que desejavam para seus filhos, religiosa ou laica. Ao direito dos pais corresponderia o dever do Estado de propiciar os meios para sua efetivação, isto é, bolsas de estudo nas escolas privadas confessionais. Na época, as igrejas evangélicas não tinham grande contingente de adeptos e o setor público de ensino secundário era tão reduzido que ginásio era sinônimo de escola católica. Desde então, centenas de escolas católicas fecharam as portas e as escolas públicas de educação básica se multiplicaram, em todo o país. Daí o cuidado para que sugestões generosas como a que apontei não sejam apropriadas e redefinidas, em proveito da privatização do ensino, propósito que não pode ser imputado à tese em foco.

De todo modo, as passagens problemáticas referidas acima ocupam não mais do que meia página de um texto alentado, que contém o desenvolvimento de um pensamento maduro sobre a laicidade do Estado brasileiro, razão pela qual o recomendo aos visitantes da página do OLE´. Quanto a mim, terei esse livro como referência em todos os momentos em que tratar das vicissitudes jurídico-políticas da construção do Estado Laico no Brasil.

[Dica de Luiz Antônio Cunha]

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

Agenda de atividades

Copyright 2024 - STI - Todos os direitos reservados

Skip to content